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Conto

O menino com olhos de botão

Era uma vez um menino que tinha botões no lugar dos olhos. Nascido em uma cidade pequena no sul da Alemanha, Charles cresceu ao lado do irmão mais velho, um garoto autista de dezessete anos, e sua mãe, que há pouco perdera o marido para os caminhos da guerra.

Charles estava acostumado com a percepção de que vivia em um mundo vazio e sem cor. Carente dos afetos da mãe, que aparentava ter olhos apenas para o filho mais velho, o menino levava a vida mediocremente. O acordar e ir para a escola eram obrigações diárias, que se tornavam piores ao ouvir a mãe dizer:

— Cuide do seu irmão, Charles. 

Tudo bem. Ele entendia que o irmão precisava de ajuda, afinal era um alvo fácil de valentões e pessoas de mau-caráter. Mas quem o protegeria? Então ele se via sozinho de novo. Um mundo em preto e branco, onde tudo e todos eram rabiscos e esboços mal-acabados. 

Pessoas viviam lhe dizendo que, após a morte do pai, seus olhos foram substituídos por botões de roupa. “Quanta idiotice!” pensava o menino, “onde já se viu, botões no lugar dos olhos!” 

A verdade era que Charles se sentia aprisionado, preso pela obrigação de viver às sombras do irmão como um protetor e apenas como isso.

Quem era ele? Quem ele queria ser? Não sabia. Uma mente pouco clara e confusa, ele não sabia se encontrar e não queria. Não tinha forças para tal atitude, tinha medo. O que diria sua mãe caso dissesse que não queria viver para o irmão? Para isso ele tinha resposta, pois já havia dito.

Numa tarde de domingo, quando voltou para casa, sua mãe veio lhe perguntar onde estava. Seus olhos foram para o irmão na porta, o rosto machucado e cortado, as roupas sujas de lama, sem expressão, apenas observando. 

— Estava na banca, comprando gibis. 

Os gritos da mãe foram cortantes. Ele deveria estar ao lado do irmão, mesmo que uma nova edição de seu gibi favorito tivesse sido lançada há pouco. “Privilégios” dissera a mãe. “Não podemos nos dar ao luxo de privilégios caso isso signifique dar as costas, mesmo que por um segundo, a seu irmão.” 

— E se eu não quiser? — murmurou Charles, o olhar choroso da mãe se tornou confuso. — E se eu não quiser passar minha vida cuidando dele? Seria melhor se ele morresse…

A dor veio depois de alguns segundos. Sua mãe lhe dera um tapa. De ódio, de desgosto. Como pudera dizer isso a ela? Nunca esqueceu a surpresa e indignação no rosto dela ao ouvir tais palavras.

Então ele seguia. Aceitou seu destino, sem questionar, sem ao menos tentar se identificar, sem descobrir quem realmente era.

Um dia ele conheceu uma menina. A garota tinha olhos frios e um coração sem sentimentos. Mas sua beleza o encantou, os longos cabelos negros e as curvas infinitas. Charles passou a acompanhá-la, afinal ela nunca reclamava da companhia repentina do garoto. Sua vida tomou um pouco mais de cor, então.

Porém, um dia, quando finalmente se declarou para a menina, ela respondeu:

— Quando finalmente se livrar dos botões, venha me ver novamente. Até lá, acho melhor nos afastarmos.

Aqueles malditos botões! Por que todos lhe diziam isso? O que eram esses botões afinal?

Semanas depois, Charles levou seu irmão para brincar no lago. A superfície da água estava congelada devido ao ápice do inverno na região. Correndo sobre o lago, os dois gargalhavam. Charles percebeu então que seu irmão se abria apenas para ele e para a mãe, um porto seguro fora de seu próprio mundo. Então ele sorriu, se sentiu feliz ao ver o irmão se divertindo.

No entanto, a felicidade se tornou desespero quando reparou para onde o irmão corria. A região mais fina da camada de gelo já começava a rachar sob os pés do mais velho e Charles gritou. Os berros de desespero do menino foram ignorados e gelo se partiu.

O irmão de Charles caiu sobre a água congelante e a face do mais novo empalideceu, sua garganta travou engolindo em seco. O tremor percorria seu corpo cada vez mais, o sonido de seus batimentos acelerados era como o canto de um tambor frenético e nenhum de seus pensamentos estavam claros o suficiente, o desespero palmilhava em seu interior.

— Charles! — A súplica balbuciada entre as tentativas falhas do irmão de sair da água eram proferidas desesperadamente. — Charles, me ajude!

Ele hesitou. As lembranças da tarde em que a mãe lhe bateu retornaram à memória e Charles começou a se afastar.

— Charles, me ajude! 

Os passos cada vez mais longe da cratera onde o irmão caíra. 

— Charles! — lágrimas lhe escorriam pela face pálida e gelada. — Charles!

Então ele parou.

Ele se lembrou de todos os momentos em que o irmão lhe trouxera felicidade, pensou em como a mãe se sentiria, pensou no próprio irmão que o idolatrava como um herói, mesmo ele sendo mais novo. Desejava a morte do irmão? Inúmeras vezes, mas nunca como um desejo profundo, apenas como pensamentos ruins em um momento de raiva ou frustração.

Ele recuou, virou para o irmão que já começava a desistir de lutar para sair. Então correu.

Charles estendeu a mão ao mais velho, que agarrou seus dedos e impulsionou o corpo facilitando para que Charles o puxasse. 

O menino abraçou o irmão, que desmaiou sobre os braços do mais novo. 

Passos ecoaram pela superfície congelada e aquela menina apareceu diante de Charles.

— Por que não o deixou? — perguntou a menina, inexpressiva. — Pensei que era isso que tanto desejava.

— Não é — respondeu Charles. — Ele precisa de mim.

— Então não acha mais que seu destino ao lado dele seja algo ruim?

— Não, ele precisa de mim.

— Vai desistir de descobrir quem você é, só porque ele precisa de você?

— Posso me encontrar e descobrir quem eu quero ser ao lado dele, afinal ele faz parte de mim.

A menina sorriu.

— Os botões sumiram — disse ela. Então se virou e caminhou de volta de onde quer que tinha vindo.

Tags : amorcontofamíliairmandaderelacionamentosvida em sociedade
Alice Lopes

The author Alice Lopes

A mais nova da família, Alice é escritora de fanfic para kpoperos desde 2017. Recém-envolvida pelo mundo dos animes, ela adora livros e seus passatempos preferidos são comer e dormir, além de uma boa conversa com as amigas sobre coisas bobas.

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