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Conto

Búzios de plástico

Quando vi Fábio das Figueiras, o “Português do Pelourinho”, sair sem passar a chave, deixando maleta e búzios para trás, percebi que era o Piauí outra vez e não voltaria a encontrá-lo. Sua despedida foram o som dos chinelos batendo na ladeira e os cachos balançando no ritmo louco da fuga.

Fábio veio ao Brasil, palavras dele, “pronto para voltar para as Quinas”, mas eu não acreditava. Ou metade de suas histórias era mentira ou meu colega era o maior português vivo. Falavam em Teresina, cidade onde o conheci, que quando chegou ao Rio de Janeiro não ficou nem uma semana, pois trocou tapas com um bicheiro perigoso no bar e precisou pegar o primeiro ônibus que o levasse embora. Não conseguiu ir muito longe, pois o dinheiro era mais curto que a urgência. Ficou alguns meses em Belo Horizonte e de lá foi trabalhar numa padaria em Uberlândia, depois em um estúdio de tatuagens careiro em Corumbá. Orgulhava-se de uma onça engalfinhada com uma índia seminua na panturrilha esquerda — único pagamento que diz ter recebido no Pantanal — e de uma cicatriz horrorosa na mão direita que ganhou num seringal depois de rodar o norte do país.

Fábio das Figueiras ficou conhecido em todos os lugares que passou como um valente e beberrão, desses que fazem juras de amor com a mesma facilidade que vira a mesa e arma um soco contra você. Pude constatar sua fama quando trabalhamos numa empresa de carretos no Piauí. Foi difícil crer que aquele magrelo era tudo o que diziam, até que ele resolveu sua dívida com o caminhoneiro, nosso chefe, numa competição para ver quem comia mais ovos de codorna no botequim. Fábio venceu e bebeu e gritou como um teresinense nato, o que para mim era a sua característica mais absurda: a capacidade de parecer um local, de se misturar e ser querido, mesmo quando bebia e cantava aquela música estranha e triste, para depois dormir com a maleta algemada ao pulso.

Era nisso que pensava quando apaguei o cigarro na parede e levantei-me da calçada. Lá do outro lado, na entrada da pensão onde morávamos no Pelourinho, uma pequena aglomeração teve início. Bati a poeira da bermuda com as mãos enquanto atravessava a larga rua de pedras, sem saber dizer por que estava tão calmo com a situação. Se o roteiro fosse mesmo parecido com o que vivi no Piauí, precisava chegar ao quarto com a maleta antes de escutar a sirene das viaturas. Porque lá em Teresina eu não pensei duas vezes ao pegar nossas coisas e fugir com ele para a Bahia. “Devo-te a vida e um pouco mais, gajo”, disse pra mim quando entreguei a maleta e bati a porta do Uno caindo aos pedaços.

O corredor que dava para o fundo da pensão já estava lotado. Todas as mulheres que vendiam acarajé em Salvador apareceram para sentir o último cheiro daquele capoeirista de mentira, roubar os vasos de comigo-ninguém-pode do filho de Ogum com a princesa Isabel. Vi algumas lágrimas e barrigas inchadas. Era o Piauí de novo, mas eu não correria atrás daquele português outra vez. Desvencilhei-me de duas das futuras mães dos Figueirinhas e consegui chegar ao quarto. Estava diferente, só uma cama baixa, a caixinha onde Fábio guardava os búzios e a maleta com a algema presa na alça de couro preto. Nada dos pôsteres e dos livros, então aquele maldito já tinha tudo preparado para sumir de vez. Senti uma pontada de tristeza, talvez ingratidão, nada parecido com aquele senso aventureiro de quando cortamos estradas esburacadas pelo nordeste brasileiro, as luzes e sirenes como se a polícia do mundo inteiro viesse em nosso encalço. Mas a calma com a nova fuga, sobretudo a calma, permaneceu. O burburinho e o choro aumentou e assim eu tive certeza que a polícia estava forçando entrada entre as mulheres lá fora. Não havia sirenes e vi que os búzios que Fábio jogava eram de plástico. Era hora de saber que havia na maleta.

Nunca perguntei ao português do que ele fugiu lá no Piauí e nem achava que sua fuga havia começado na zona boêmia do Rio de Janeiro. Mas no momento em que decidi entrar no carro, acabei virando parte de seu crime. “Bota as mãos na cabeça e deita no chão, filho da puta”, disse um dos policiais. “Anda logo, porra! Deita no chão!”.

Eu só tinha visto fotos de Polaroid em filmes e achei o máximo ter uma nas mãos. A menininha, com os mesmos cachos aloirados que desceram o Pelourinho num carreirão, encimava a seguinte mensagem escrita à caneta azul:

“Volta. Papai morreu. Vem conhecer seu cravinho que só faz perguntar por você.”

Eu já estava no chão e com a bota de um policial suarento na nuca. Se queriam o dinheiro, teriam que correr para o porto, para a rodoviária ou para o diabo. A calma permanecia, agora de mãos dadas com o senso de dúvida sanada. Afinal de contas não fazia sentido tanta loucura e fuga se não fosse por uma mulher impossível de se ter.

Tags : amoraventurabahiabrasilbúzioscontoportugal
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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