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Crônica

Do amor de um lado só e outros abismos

Abismos

O maior livro que vi na vida foi um dicionário. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, edição da Nova Fronteira de 1993. A capa grossa, azul-marinho, ficava ainda mais charmosa com o dourado escolhido para a fonte das letras. E o mais legal: também dourada estava a assinatura de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o famoso autor, centralizada, com a beleza que nunca terei em uma rubrica minha. Foi lá que escolhi a palavra favorita — nenúfar — e foi debruçado nele que tive a certeza de que um calhamaço daqueles deveria conter todas as palavras do mundo. Mais, muito mais. Tudo o que eu quisesse falar estaria ali, nas milhares de páginas finas, cada uma delas com suas três colunas de definições em caracteres miúdos. Só que não estava tudo ali. O inefável bateu à minha porta em algum momento.

Acho que você sabe do que estou falando.

Imagine aquela menina, a dos moletons em pleno setembro, talvez com um piercing no nariz e mecha rosa-choque no cabelo. Aquela que no início do ensino médio não sorria e fazia com que algumas colegas temessem um Bowling for Columbine à brasileira. Preconceitinho, claro, misto de pânico, imaturidade e intolerância. Mas não entremos no mérito. Só idealize a menina e a escola. Finja que você está assistindo a um filme e ela é a razão da coisa toda. Daí, agora, ela está sentada num banco da cantina. É final de ano e não há moletom desta vez — a rebeldia contra o uniforme escolar perdeu para o mormaço de pré-verão e para um amigo insistente. E lá vem ele, o amigo. O carinha que, veja só, faz a menina puxar a mecha colorida para trás da orelha esquerda e sorrir. Lá vem ele. Desgarrou-se do grupo de sempre, porque já vai embora para casa. Quase meio-dia. Sexta-feira. Vem correndo ao encontro dela com o moletom da garota amarrado à cintura, as mangas descrevendo elipses loucas a cada passada larga. Então ele chega, já com o blusão cinza nas mãos para devolver e acompanhado de uma despedida rápida, tão curta quanto o beijo que deixa na bochecha. O calorão que sobe é alheio à temperatura ambiente, pois aquilo de beijo é novidade. Antes do menino afastar o rosto do dela e sumir do quadro, ela sente o cheiro da bala de maçã verde que estava na boca dele.

Do amor de um lado só

O filme não vai ter fim, assim como não tem começo. O que importa é só a sequência de cenas aí em cima. Se ainda não consegui dizer para você que, sim, a menina gosta do menino em segredo, estou dizendo agora: ela gosta. Creio que o rapaz não corresponda, no entanto ele investe ali muito carinho e presença. A mescla de detalhes que faz nascer o amor de um lado só. Um sendo sensacional em todos os passos de dança, a outra parada num canto do salão com medo de se soltar e estragar a festa, atrevendo-se apenas a dar pequenos acenos para a pista. Todo mundo sabe como funciona.

Mas estou divagando. Quero falar do indizível.

Assim como você conhece o amor de um lado só — por ouvir falar ou por ter sentido no corpo —, também vai saber o que quero dizer quando afirmo que a menina com taquicardia e um moletom no colo que largamos ali em cima viveu uma situação impronunciável. Por mais que eu reescreva o roteiro ou algum diretor faça um reboot do filme, jamais teremos acesso à sensação da garota, pois ela não conseguirá colocar o arrebatamento em palavras. A luz no piso, o calor, o contato da calça do uniforme na pele, o som das passadas do amigo, o burburinho da cantina que some de repente quando ele joga o moletom em seu colo e se inclina para perto, fazendo o tempo se espichar e o coração dela querer grudar no peito dele. Aí o beijo onde antes estava a mecha rosa-choque e, de repente, o cheiro de bala de maçã verde. Como colocar em palavras, como tentar passar para alguém o que é experimentar aquilo tudo? Não dá, está além da descrição. É impronunciável e faz parecer que ou não temos ferramentas ou é simplesmente impossível, a linguagem tem limites. Existem abismos entre nós.

Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco que se interessou pela linguagem muito antes deste que vos fala, no final de seu Tratado Lógico-filosófico, diz que o indizível está mesmo por aí e o chama de místico. Numa analogia certeira, o autor compara o impronunciável a subir por uma escada e logo depois jogá-la fora, impedindo assim que alguém faça o mesmo caminho para chegar aonde você está — ou pelo menos foi isso que entendi. Não ouso me aprofundar aqui em uma seara dessas, seria no mínimo imprudente, mas o último aforismo do livro, mesmo sabendo do contexto crítico à filosofia, é inquietante para mim: o que não se pode falar, deve-se calar.

Pontes

A internet está cheia de listas com palavras e expressões em vários idiomas que significam algo incomum ou que descrevam situações bem específicas. Gosto delas, das listas, porque se aproximam do poder que pensei possuir toda vez que abri aquele Aurélio na infância. Cafuné, por exemplo, que para a gente aqui no Brasil é algo tão corriqueiro, não possui uma tradução correspondente lá fora. Petrichor, o cheiro da terra molhada que sentimos logo depois que começa a chover, e arrebol, a cor alaranjada das nuvens quando o sol está nascendo ou se pondo, são palavras que compartilhamos com outros idiomas. Em 2004, a congolesa ilunga foi eleita a expressão mais difícil de se traduzir para outra língua. Significa mais ou menos: pessoa que perdoa alguém uma vez, tolera um segundo erro, mas jamais aceitará que a coisa desande em uma terceira oportunidade. Lindo, não?

Outra: Momma ko ene, da língua dos cheiene, é um adjetivo para quem tem os olhos vermelhos de choro por conta do amado que se casa com outra pessoa. E um último exemplo: graças a Cristina Calderón, um senhorinha que vive no extremo sul do Chile, considerada a última falante da língua Yagan da Terra do Fogo, temos conhecimento da palavra mamihlapinatapai: o olhar de relutância entre duas pessoas quando ambas querem tomar a iniciativa para algo desejado por elas, mas que nenhuma tem coragem de fazer.

Não dá para dizer que não tentamos com afinco criar pontes para descrever a realidade e o que sentimos.

Voltemos à menina, ao momento que foi coroado com o beijo. Ela está lá, arrebatada, e seria perfeito se um neologismo mágico, talvez no dialeto perdido da senhora Calderón, pudesse condensar o que é ser beijada pela primeira vez no rosto pelo amado num dia quente e sentir o aroma adocicado de bala de maçã verde. No entanto, mesmo se algo assim fosse possível, chegaríamos ao máximo na descrição, nunca à experiência individual. Há um tempo, outro austríaco, Sigmund Freud — de quem eu poderia falar com um pouquinho mais de desenvoltura, mas não vou — também se enveredou no assunto da dificuldade do dizer. Ao apresentar sua noção de inconsciente para o mundo, o pai da psicanálise demonstrou que aquilo que não conseguimos colocar em palavras pode muito bem ser aquilo que nos aproxima de uma completude. A impossibilidade de botar para fora não significa que a coisa não esteja ali, em algum lugar, aparecendo de vez em quando das mais variadas maneiras.

No final das contas, sei bem disso, querer ter acesso ao individual alheio é muito utópico, meio transcendental mesmo. A utopia da coisa faz com que eu desconfie de uma solidão inerente ao ser humano, algo que Carl Gustav Jung descreveu da melhor maneira possível em Memórias, sonhos e reflexões: solidão não é a ausência de pessoas em nossa vida, mas a impossibilidade de passar a elas aquilo que é caro para nós. É a menina da mecha rosa-choque, em puro êxtase numa sexta-feira abafada, constatar que o valor daquela experiência não fará sentido para outro alguém como fez para ela.

Ficou meio longo, mas tudo bem. Pontes nunca são demais. Só mais uma coisinha:

Aqui, na terceira pedra a partir do Sol, nunca estivemos tão conectados uns aos outros. Falar de arrebatamento e solidão fez com que eu me lembrasse da sonda Curiosity, lá em Marte. Sigo seu perfil no Twitter. Ela pousou em solo marciano no dia 5 de agosto de 2012 e, em 5 de agosto do ano seguinte, cantou parabéns para si mesma no distante planeta vermelho. E foi graças à sonda que descobri algo maravilhoso, algo que até faz com que ela se aproxime da nossa garota do moletom, pois as duas solitárias viveram coisas difíceis de colocar em palavras. Se a menina vai ficar para sempre com aquilo da maçã verde só para ela, a Curiosity fica com o fato de que em seu primeiro dia em Marte presenciou um pôr do sol diferente, não alaranjado como o nosso, mas de um azul absurdo. Não sei se há ou haverá uma palavra para isso também.

Tags : amorciênciafilosofiapsicologiarelacionamentossolidão
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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