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Crônica

Quando eu falava desses homens sórdidos

Há duas semana João Pedro foi assassinado com um tiro de fuzil. Ele tinha quatorze anos de idade, era negro, pobre e virou estatística. Brincava na casa de primos no Morro do Salgueiro em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, quando foi alvejado pelas costas durante operação das polícias Civil e Federal. Mais uma vez tivemos que olhar para a foto de um pai destroçado sobre o caixão do filho.

Os noticiários repetem a história de João Pedro desde sempre para mim. Mudam as idades, as cidades e os sexos, no entanto a cor de quem os projéteis encontram é a mesma. Estamos dessensibilizados. Parece não fazer diferença o número de pessoas negras que tombam: soam como perdas normais e distantes para muita gente. É só aquilo que com frequência toma conta da escalada do Jornal Nacional. Estamos dessensibilizados e eu me pergunto por quê. Mortes como a de João Pedro viram números e lágrimas, combustível e obstáculo para ativistas, postagens indignadas e sofativismo em nossas bolhas virtuais.

Mas, dias depois do enterro do menino de São Gonçalo, George Floyd ficou por minutos com o joelho de um policial branco no pescoço em Minneapolis. O homem negro morreu por conta disso e agora os Estados Unidos estão em chamas. Literal e metaforicamente falando.

Não há dúvidas de que a ferida aberta do racismo institucionalizado estadunidense tem similaridades com a de cá e com muitas outras feridas mundo afora. Talvez por conta disso manifestações antirracistas começaram a arder na França e muitos imaginaram que a multidão reunida na Avenida Paulista no último domingo também fazia coro aos protestos norte-americanos. Todos terminaram em quebra-quebra e confronto com a força policial. Trump, aliás, correu para se esconder em um bunker dentro da Casa Branca e afirmou que vai classificar Antifa como grupo terrorista pelos estragos que estão causando por lá. Coincidência ou não, as bombas de efeito moral estouraram na capital paulista, dizem,  depois que um antifa discutiu com manifestante bolsonarista que carregava a bandeira do Pravyi Sektor, grupo de extrema-direita da Ucrânia.

Ah. E tudo isso no meio de uma pandemia.

Vale destacar: João Pedro e os primos estavam em casa por conta da quarentena durante a pandemia. George Floyd era segurança em um restaurante de Minneapolis e perdera o emprego por conta das medidas de isolamento que afetaram o comércio durante a pandemia. As torcidas organizadas se reuniram na Paulista em defesa da democracia, respondendo aos insistentes lunáticos que há semanas cospem impropérios golpistas, desrespeitam a quarentena e as medidas de isolamento social durante a pandemia.

Fascismo e o menino que gritava lobo

Deixemos de lado por enquanto que o #fiqueemcasa perdeu para o caos. Falemos dos antifas. Eles vieram à tona e a discussão sobre fascismo pegou carona em nossas redes sociais. A bandeira do movimento Antifa foi apropriada e replicada e customizada. Para além das críticas ao uso do estandarte, é um alento constatar que as pessoas estão preocupadas com a escalada fascista a olhos vistos no Brasil. Mas todo o imbróglio sobre fascismo e a apropriação da bandeira me fizeram lembrar que o nome e os símbolos das coisas importam.

Anos atrás, ainda na verve do pingue-pongue político após o junho de 2013, professores universitários, meus professores, discutiam algo pelo Facebook quando alguém sacou a carta do fascismo. Fique puto. Achei um desserviço, porque tudo pelas redes vira um “Nós contra o mal” e chamar alguém de fascista/nazista ou apoiador de gulag comunista perdeu o peso que deveria ter. Não cabe apontar fascismo em alguém sempre que este alguém discordar de você, pois o nome e os símbolos das coisas importam. FHC, Alckmin, o PSDB, o PT e até Marina Silva já entraram na lista de fascistas de ocasião, seguindo a lógica do vale-tudo político do “Nós contra o mal”. A velhíssima história do menino pastor de ovelhas que gritava lobo à toa, de brincadeira, assustando a todos. Quando o lobo de fato apareceu, ninguém acreditou. Por mais que ele gritasse. Dessensibilizados.

E o lobo está aí agora, dono do curral de ovelhas. Podemos afirmar que está aí, porque os símbolos e os nomes das coisas importam. O culto à tradição do presidente no lema de inspiração fascista em seu quase partido — Deus, Pátria e Família —, inspirado no Integralismo de Plínio Salgado, ou quando repete a passagem de João 8:32, “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. A recusa da modernidade e o irracionalismo, quando o presidente e seus filhos negam a ciência e esculhambam a cultura. Esculhambação que desbanca na ação pela ação, no agir sem pensar, já que ter pensamento crítico é coisa de intelectual, e intelectuais são energúmenos. Porque criticar é fugir do padrão e o medo da diferença é pauta do poder executivo, o que resulta em homofobia, xenofobia, racismo e outros preconceitos. A reiterada ode ao nacionalismo de Filipe Martins, assessor do presidente e aluno prodígio de Olavo de Carvalho. Todos sinais de fascismo. Sem falar no desejo pela guerra, no culto ao macho, no populismo e no messianismo encarnado no líder como resumo da verdade.

Os nomes e os símbolos importam, pois sem eles não veríamos que o ex-secretário de cultura emulou o discurso de Goebbels, o penteado e até a postura do nazista. Não veríamos no slogan “Brasil acima de tudo” nada além do brado de paraquedistas do Exército Brasileiro. Não relacionaríamos a tatuagem da Cruz de Ferro ao nome adotado pela líder dos “300 do Brasil”. Com tantos indicativos, seria coincidência o flerte com a eugenia, o uso do lema dos campos de concentração em campanha do órgão oficial de comunicação da Presidência da República? E Bolsonaro citando Mussolini?

Os símbolos e os nomes das coisas importam.

Algoritmos e impotência

Sei que escrever sobre isso nas redes é quase um solilóquio. Mas falei de tudo o que falei aí para cima movido pela tristeza. Se eu conseguir alcançar alguém, ótimo. Se não, ok. Os algoritmos são mães e pais que mimam os filhos, colocam a gente em uma bolha onde só recebemos o que gostamos. Somos Jimmy Bolhas modernos e nada fora dessa bolha — críticas, pessoas, ideias contrárias — pode nos tocar, caso contrário iríamos nos desgrudar das telas de vidro. Infelizmente o “Nós contra o mal” é fomentado pelos algoritmos das redes. Estamos dessensibilizados para mortes aos milhares, mas hipersensibilizados quando nos vemos fora dos lugares de detentores da bondade e paladinos da moral.

E o que fazer?

Há algo de junho de 2013 no ar. Insatisfação difusa e crescente, risco de violência nas ruas e uma pandemia para temperar o caos. Vamos quebrar a quarentena como os estadunidenses e os franceses? E a conta da saúde depois? Sinto-me impotente. Precisamos vencer o exército de ressentidos que veem no presidente sua hora e sua vez, só que perdemos a capacidade de diálogo. Acho estranhíssimo: para que serve a militância senão para trazer os outros para o lado de cá? De onde surgiu esse filtro do “você não, porque você falou isso e aquilo outro no ano retrasado”? Perdemos a capacidade de diálogo e já é tempo de comungar com quem nunca topou e com quem não topa mais chocar o ovo da serpente em Brasília.

Cavaleira negra que viveu mistérios

As mortes de João Pedro, Ágatha e Marielle Franco não botaram fogo aqui como a de George Floyd botou no norte da América. Talvez pela nossa dessensibilização de escalada do Jornal Nacional, talvez pelos trezentos anos de escravidão no Brasil ou talvez, quem sabe, por termos sido um dos último países no mundo a abolir a prática.

Enfim. Vocês devem saber da indecente relação da família Bolsonaro com os assassinos de Marielle Franco e as milícias no Rio de Janeiro. Quanto mais leio sobre, mais enojado fico. Durante a feitura deste texto, apesar da tristeza, não deixei de imaginar um futuro onde as investigações avancem e cheguem ao Palácio da Alvorada. Seria quase um sonho: Marielle voltaria, uma fênix negra e poderosa, só para dissipar a aura do fascismo e arrebentar com as cores mórbidas desses homens sórdidos. Permito-me sonhar, porque defender a vida humana e a liberdade é um fardo grande demais para se fazer todos os dias. Esse país tem que voltar a valer a pena.

Tags : bolsonarobrasilcrônicafascismoliberdademarielle francopolíticaracismosociedade
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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