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Reflexão

Homens com bolas — parte 2 de 3

Terminei o último post dizendo que o futebol monta o esqueleto de universo masculino. Afirmei e reafirmo: esse esqueleto é um monstro que engole muitos garotos por aí. Desde criança pude sentir o cheiro de algo a ser respeitado, um troço invisível mas bastante rígido e perigoso de ser desafiado. Decidi dividir a coisa toda em três partes e subdividi-la em períodos da vida. Dividir para não ficar enorme, subdividir por pura didática, para mostrar como o inferno da masculinidade piora com os anos que passam e como o futebol, travestido de paixão nacional, é ferramenta ótima para doutrinar um exército de pobres coitados.

Então, de novo: prepare o estômago. E quando digo para preparar o estômago, é porque a coisa é nojenta. Aliás, há grande possibilidade da jornada que vivi e ainda vivo com o futebol tentando me ensinar a ser homem seja algo que compartilhamos de alguma maneira. É um percurso nada bonito e pode sim ditar suas escolhas e comportamentos sociais, além de ditar a do seu filho, do seu namorado, do seu irmão ou marido. Seja lá qual for o seu sexo.

Sigamos, pois, pela efervescência de hormônios e busca de identidade chamada puberdade.

Adolescência

Quando pequeno, como já contei, fui colocado e mantido contra minha vontade num box no banheiro da escola junto com um colega de sala. O autor da filhadaputice foi um garoto mais velho, estrelinha futebolística no turno vespertino. Ele estava acompanhado por um séquito — esse tipo de cara sempre tem um — que zoneava o lugar e fazia muito barulho. Todos riram horrores das insinuações de sodomia infantil que o bully fazia enquanto eu e meu colega saíamos do local completamente embaraçados. Nós dois fomos direto para a quadra onde a promessa era de futebol na aula de educação física.

Então. Voltemos ao meu eu infantil, ainda muito encabulado com o que acabara de acontecer e chegando à quadra principal da escola. Pude ver meu colega, o companheiro do box, iniciar o processo de me ignorar para sempre ao tomar distância e se encontrar com o garoto que num futuro próximo seria a cópia daquele que nos prendera no banheiro. Nunca mais nos falamos, mas está aqui o meu gancho. A memória é verdadeira porque o encontro entre aqueles dois me deixou muito só por um instante — o carinha com quem partilhei uma experiência tosca me virou as costas e foi ter com um outro carinha que, apesar da regra à época ser clara quanto ao uso de regatas para a educação física, estava usando uma novíssima camisa 9 do Clube Atlético Mineiro, modelo infantil do ano de 1994. Eu estava de regatas e obviamente o assunto entre eles era o uniforme atleticano. Ensaiei uma birra temporária, todavia ele fazia por merecer o número, era um artilheiro nato. Houve vários como ele, mas decidi tomá-lo como personagem a ser orbitado aqui por conta dos anos de convivência e por ter ligação com o final do episódio do banheiro. Por necessidade e humor, vou chamá-lo a partir de agora de Pica Boy.

Pica Boy era rei

Pica Boy reunia todas as características necessárias e exigidas de um adolescente no final da década de 90 e início dos anos 2000 para ser o predador no futebol e no mundo masculino, quais sejam: era mais alto e mais forte que a maioria dos meninos; era considerado bonito de acordo com os padrões da Capricho e da Atrevida; fazia escolinha de futebol há anos; tinha o queixo quadrado; era escolhido pelo professor de educação física para definir os times ou era a primeira opção para os times de qualquer esporte durante as aulas; tinha ao menos três meninas num fã-clube velado-nem-tão-velado-assim; não aceitava perder nem meia partida de futebol; vangloriava-se por não ser virgem há mais tempo do que parecia ser possível e ponto. Acho que está bom. É dessa lista — creio que ela não mudou muito com o passar do tempo — que tiro algumas situações.

(Abro parênteses. Após o episódio dos socos na barriga que narrei no post anterior, só parei de jogar bola na rua depois de passados doze anos. Muito mais por falta de quórum e tempo do que por qualquer outra razão. Vi e escutei um sem-fim de coisas enquanto queimava os pés no asfalto, coisas que poderia com certeza contar aqui, mas vou me ater ao que possa estar ligado ao Pica Boy. Vamos lá. Fecho parênteses).

Em determinado momento de minha adolescência, um de meus companheiros de bola na rua e vizinho de muro começou a frequentar os treinos da escolinha de futebol de um ex-jogador que morava perto de nossas casas. Paulo Isidoro, para quem não conhece, foi um multicampeão. Rodou o Brasil, mas fez fama por aqui jogando pelo Atlético Mineiro. Participou também da Copa do Mundo de 1982, integrando aquela que foi considerada uma das melhores equipes de todos os tempos, o que só faz aumentar a vergonha de nossas atuações nos Mundiais de 1986 e 1990. Bem, há tempos Paulo tinha o desejo de ensinar futebol para rapazes e estava finalmente botando seu plano em prática. Eu logo entrei na onda. Alguns dias depois de tomar conhecimento da empreitada, já estava dentro de uma van cheia de garotos uniformizados e empolgados por poderem jogar num gramado marcado com cal e desvendar os atalhos do campo com uma estrela considerável do futebol brasileiro. O negócio é que, meio que sem perceber, depois de algum tempo treinando, digamos que deixei de ser um cabeça-de-bagre qualquer e chamei a atenção do Pica Boy nas aulas de educação física. Resultado: fui convidado por ele a participar de seu time no campeonato interno da escola e, de quebra, ganhei mais uma história sórdida naquele fatídico banheiro.

Masculinidade frágil

Ganhamos o primeiro jogo e estávamos no mesmo lugar onde anos antes eu tinha sido preso num box depois de questionar a utilidade dos chuveiros, já que ninguém tomava banho ali. Qual não foi minha surpresa quando percebi que, sim, usaríamos os benditos chuveiros antes de irmos para a sala de aula? Acho que a noção de higiene pós-futebol fica diferente quando temos pelos nas axilas. No entanto, surpresa maior foi o Pica Boy resolver testar o quão homens eram os primeiros a tomar a ducha gelada. Enquanto os dois estavam lá, nus e sofrendo com a água fria, o macho alfa chegou sorrateiro e seminu por trás de ambos para correr com o dedo médio, de baixo para cima, boa parte da fissura que separava as nádegas dos meninos. O susto foi imediato e os protestos veementes. Era o esperado. O experimento é simples e tem variações mil. É só um grupo de homens de qualquer idade estar junto para que haja tal testagem: uma bunda ou perna mais à mostra e pronto, é preciso passar a mão ou elogiar para que o apreciado possa demonstrar toda a sua indignação por ser tachado como mulher ou homossexual ou simples objeto de desejo de outro homem. Acho que na van lotada de meninos, voltando de alguns treinos, isso chegou a acontecer comigo mais de uma vez, e também acho que vi uma leve ereção dentro da cueca do Pica Boy quando ele tentou repetir o teste com os outros garotos do time da escola. Nós perdemos o campeonato.

E por falar no que havia dentro da cueca do Pica Boy, foram muitas as vezes que tive a oportunidade de ver o que estava ali. Não de caso pensado, mas porque o mundo masculino tem muito disso. Você é obrigado a passar pelas situações para se sentir no direito de replicar qualquer estupidez em qualquer lugar, para que quem passe pela situação se sinta no direito de replicar qualquer estupidez em qualquer lugar e por aí vai, tudo para atestar sua masculinidade. Como naquela vez que estávamos em viagem para alguma cidade histórica mineira e Pica Boy se empolgou com a ideia do seu fã-clube velado-nem-tão-velado-assim estar competindo por ele. O rapaz não conseguia ficar sentado no fundo do ônibus e, não sei como ou o que serviu de gatilho — talvez a efervescência da puberdade —, simplesmente baixou as calças e disse para uma das tietes, com o membro balançando entre as mãos: “eu sei quem tá querendo isso daqui”. Risos de alguns, indecoro para outros. Não sei quem conseguiu aquilo lá, mas sei que ele alcançou o que queria.

Homens com bolas e violência

Para finalizar a adolescência, duas situações ocorridas num mesmo dia, durante — adivinhem só — uma aula de educação física que depois de certa idade parece oferecer apenas futebol para nós, os meninos. Era início de ano e ainda estávamos nos acostumando com as caras novas. Pica Boy já tinha um séquito formado e naturalmente os integrantes de sua equipe coincidiam com a trupe. Eu e alguns amigos mais próximos formamos outro time. Bola vai, bola vem, um dos meus conseguiu aplicar drible previsível mas muito efetivo para cima do Pica Boy. O bambambã ensaiou um pisão no tornozelo dele, no entanto desistiu no último momento. Nada que um escudeiro fiel não resolvesse: antes que o ala do meu time pudesse completar a jogada, levou uma rasteira bem dada e se arrebentou no chão.

A confusão foi enorme.

Muito empurra-empurra, mães sendo citadas e tals, para, no final, o Pica Boy ter o antebraço colocado contra a garganta do meu amigo e perguntar: “o que cê tava fazendo no final do ano, fulano? Estava com a vovó? Pois eu tava comendo boceta”. Por incrível que possa parecer, aquilo funcionou. A cara de cachorro sem dono do meu ala ficou marcada em mim. Quem era ele para desafiar o Pica Boy e sua plateia? Parecia que o argumento “estou comendo alguém e você não” vencia qualquer discussão. Soou muito viril naquele dia e definiu o vencedor da briga generalizada.

Ao que parece, e é o que pretendo mostrar no próximo post, a prova de virilidade era e ainda é tudo o que importa quando você vira adulto e continua a jogar bola.

Tags : futebolhomeminfânciamachismomemóriareflexãosexualidadesociedadeviolência
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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