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Crônica

O amor é da cor de um Sonho de Valsa

Há muitos anos descobri que era possível convidar alguém a te beijar caso você soubesse fazer um origami com a embalagem de balas, bombons e afins. Era bem simples. Bastava comprar alguma coisa no carrinho do tio da bala na saída ou na entrada da escola. Aí, enquanto você mascava ou chupava o doce, a mágica acontecia. Presenciei algumas vezes o processo de feitura até o fim, graças à amiga que me apresentou ao segredo. Ela esticava a embalagem do papel de bala, depois dobrava feito um cigarrinho, então dava um nó parecido com o de gravatas, de maneira que a dobradura fizesse um belo V, tendo aquele pequeno nó triangular como vértice. Um coraçãozinho alado. Ganhar um daqueles significava romance certo: alguém queria te beijar. Geralmente quem entregava.

O último que a vi fazer — e o último que vi na vida — foi com o embrulho de um Sonho de Valsa, mas ela não me deu. Não era para mim. Nunca cheguei a receber embalagens dobradinhas. Paciência. Os pedidos de beijo em origami devem ter pousado na década de 1990 e por lá ficaram.

Amor de plástico

As dobraduras vieram à tona porque vi uma foto comemorativa dos 25 anos do lançamento de Lua de Cristal, aquele filme da Xuxa com o Sérgio Mallandro. Era o preferido da minha amiga. Assistimos e reassistimos àquilo no colégio e na Sessão da Tarde. E, porra, era o Sérgio Mallandro como príncipe salvador da Xuxa. Cavalo branco e tudo. Sérgio. Mallandro. Montado. Num. Cavalo. Branco. Creio que eles repetiram a cena no novo programa dela na Record, só que foi na Record, então não gerou buzz nas redes sociais. O negócio é que é muito maluco, e eu já achava bem maluco desde a época dos origamis de papel de bala: o amor romântico tem regras que vão nos ferrar para sempre se não ficarmos atentos. A donzela em perigo, o príncipe no corcel branco e o viveram felizes para sempre.

Conhecemos as regras, mas não sabemos o que é amor.

Xuxa e Sérgio Mallandro só ocupavam lugares momentâneos. Troque-os por Jasmine e Aladdin, o casal de mocinhos de Malhação, seu ideal de namorada ou namorado. Você e outra pessoa. Tanto faz. É uma loucura. Desde muito novos sentimos essa coisa espessa, essa eterna propaganda de 12 de junho em shopping center tomar conta da gente. Uma casca linda, uma superfície tépida ao toque, mas nojenta quando vivida à plenitude. É sério. Do ciúme como tempero do amor aos crimes passionais. Do recato feminino ao “você sabe como é homem, né?”. Posso encher páginas e páginas com exemplos que enfeiam o pacote do amor romântico de propaganda. É uma loucura. Porque ele tem regras que vão nos ferrar para sempre caso não fiquemos atentos, e o que mais percebo por aí são pessoas perdendo o foco, ignorando o que buscam de verdade para dar valor a um cavalo branco completamente desnecessário.

E vou ser ousado.

As pessoas engolem a história do felizes para sempre, mas na verdade querem mesmo é viver o amor das letras do Herbert Vianna. A lua que eu te dei, De perto, Aonde quer que eu vá, Seguindo estrelas, Se eu não te amasse tanto assim. Ali, na poesia sem igual do vocalista dos Paralamas do Sucesso, encontramos a essência do que valeria a pena viver ao lado de alguém. Uma mania de exageros, uma facilidade de enxergar estrelas em íris. O respeito máximo que nasce da cumplicidade em cada mísero detalhe, da liberdade e da coerência. Não há conflito, perde-ganha, retaliação. Só cumplicidade.

Sonho de Valsa

Já escrevi em outro lugar — e repito sempre que tenho a oportunidade — que não entendo qual é o ponto de se estar com alguém quando o tal alguém é tratado constantemente como um inimigo em potencial. Um alguém que demanda vigilância constante, pois sem vigia o alguém pode a qualquer momento pisar na bola e te dar aquele soco bem dado no estômago. Um alguém que obrigatoriamente aquilo, ou aquilo e aquilo, já que é um alguém de alguém e alguéns fazem essas coisas. Não entendo qual é o ponto de se estar com uma pessoa quando a relação é pautada por um eterno quê de chantagens e proibições e obrigações. As regras dessa aura espessa de shopping center vão nos ferrar para sempre se não formos espertos. Ou só honestos.

E dá pra subverter o que está colocado por aí? Acho que sim.

Talvez o mais importante seja o tempo todo tentarmos enaltecer e lapidar uma escolha que não deve nunca ser baseada no confronto, mas sim na liberdade e na responsabilidade de cuidar do outro no limite do cuidado consigo mesmo.

Em tempo: A minha amiga, a dos origamis, entregou aquele derradeiro convite de beijo a um colega de sala em comum. Eu e ela éramos bastante próximos naquela época, mas a vida aconteceu e perdemos contato. Alguns anos depois daquele Sonho de Valsa, fiquei sabendo que os dois estavam casados, tinham uma filha e planos de morar no Uruguai. A filhinha, nas fotos, estava com a roupa da mesmíssima cor da embalagem do bombom que virou o primeiro beijo dos dois.

Tags : amorciúmemúsicarelacionamentossonhos
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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