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Crônica

Odeio setembro

Aquele momento bizarro onde você percebe que possui um apurado e amplo senso das coisas, elevando sua percepção à enésima potência em um segundo, entretanto você não sabe como lidar com a súbita habilidade. Não há tempo para gravar, aproveitar ou qualquer coisa desse tipo. Vai como veio. O sentido da vida borbulha em cada glândula sudorípara enquanto você escuta vozes e tem premonições sobre mundos paralelos, ou quase paralelos. E vai como veio, em um segundo. Eu odeio setembro.

Aí o mal-estar.

Você levanta da cadeira, continua andando, interrompe um livro. Olha em volta para conferir se alguém percebeu ou permanece deitado na cama encarando o teto do quarto, mas não importa, pois seja lá o que está fazendo, onde está, com quem está: você se sente mal. E não adianta dizer que teve uma epifania, porque você não teve uma epifania. Saramago teve epifanias. Einstein teve epifanias. Você só foi ousado. Só avançou o sinal e não tem ideia de como isso aconteceu ou por qual razão. Deus acaba de beijar sua boca e você tentou colocar a língua como quem pergunta: Ah, por que não?

Claro que é preciso muito radicalismo teológico para falar de Deus beijando a boca de alguém, quanto mais um beijo francês. Mas tomo a liberdade e o passaporte ao inferno cristão para tentar explicar a bizarrice, a trombada violenta com a megalomania. Você, naquele segundo, compreende as minúcias das más e boas intenções alheias, já que a complexa arquitetura dos fingimentos de gente que você nem mesmo quer ver estão, como nunca estiveram, ao alcance dos dedos.

Não há raiva, se é que deveria existir lugar para tal. Não há maquinações, até mesmo porque você não tem o tempo necessário. Você está acima do bem e do mal, todavia não escapa dessa frustração meio abobada. Chega a ser cômica.

Eu odeio setembro

Isso costuma acontecer comigo em setembro e, pensando nisso agora, alguém poderia indagar: se você sabe quando acontece, pode muito bem se preparar para fazer bom uso do sentido da vida. No entanto, como eu já disse, a coisa é ocasional. Costumeiramente acontece em setembro.

Estou falando de probabilidades. É tão difícil saber quando vai acontecer quanto é difícil tentar prever o futuro com déjà vus. Porque eu tenho a imensa certeza de que, se por acaso identificar padrões de um déjà vu — padrões de situações onde eles acontecem, para ser mais específico —, posso perfeitamente descobrir o que fazer para provocar um. Quem sabe até controlar o período de sua duração. Rigor científico para aquilo que a própria ciência explica como mera falha de memória.

Difícil. Demais. Essa ideia com os déjà vus não deve nem ser muito original. Talvez nem o beijo de língua divino seja, mas fiz a comparação entre as duas situações só para dizer de meus contatos extremamente breves com absurdos de poder. Breves e intermitentes. O último, há pouco mais de um mês.

Foi frustrante como sempre, porque cada um de nós tem um 11 de setembro, um 23 de setembro, um 29 de setembro. E que se dane. Que se dane a primavera com seus pardais aprendendo a voar e mendigando batata frita na porta de McDonald’s. Que se dane a primavera com seus domingos quentes e terças garoando. Que se dane. Que se dane a primavera e as reconciliações e os coraçõezinhos bregas feitos de cartolina vermelha barata. Que se dane. Eu odeio setembro.

Tags : crônicadeja vumemóriareflexãosentidossetembro
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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