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Conto

Tânatos é um peixe de aquário

É só um quarto. Nem escuro e nem claro. Há uma poltrona velha, um pequeno criado-mudo, parafernalhas que dizem ser meus pulmões e meus rins. E tubos, muitos tubos. Há uma cama também. E eu na cama. Ah, claro. Agora há o aquário com o peixe dourado. Maldito peixe de aquário. Maldita ironia.

Quando cheguei aqui as paredes eram verdes e as visitas eram bem mais frequentes. Acho que as paredes ainda são verdes, mas eu, talvez, tenha me tornado mais tedioso com o passar do tempo. Lembro-me do relógio que trouxeram certa vez. Não sei para quê. Saber as horas é meio insuportável deitado nessa cama. Eles achavam que eu não sabia as horas, mas eu sabia. Alguém deve ter percebido que eu sabia, pois não há mais o relógio na parede. Ele ficava bem em frente. Eles achavam que eu nem estava mais ali, mas eu estava. Por isso sabia as horas. Agora, em cima do criado-mudo, abaixo de onde ficava o relógio, há o maldito aquário do peixe dourado. Maldito peixe. Se soubessem a grande ironia que aquele peixe representa, voltariam com o relógio.

***

Sei que é terça-feira por causa de Roberta. Ela sai mais cedo do trabalho nas terças e aproveita para vir aqui dar comida para o peixe. “Cuidou bem do meu amor, senhor peixe? Cuidou?”. Maldito peixe. Aliás, Roberta não é como os que trouxeram o relógio. Ela é linda. Nós queríamos pegar um táxi depois daquela festa. Nós dois não bebíamos. Nós éramos namorados felizes. Se não tivéssemos entrado no carro e preferido ficar olhando para o aquário da casa do João, eu teria perguntado à Roberta se ela também não entendia por que chamavam aquele peixe de dourado. Maldito peixe. Ela não teria que vir até aqui dar comida para esse ele ou olhar com piedade para mim. Se não tivéssemos entrado no carro eu conseguiria fazer perguntas.

É uma grande ironia. Nunca entendi os motivos de chamarem aquele peixe alaranjado de dourado. Minha tia comprou um desses e deu para mim quando eu era menino. Veio em um saquinho plástico cheio d’água. “Ele é laranja, tia. Dourado é o colar da mamãe”. E todos achavam graça da comparação. Eles não tinham resposta para a minha pequena grande dúvida. O engraçado é que a dúvida não se foi quando o peixe morreu. Morreu rápido, por sinal. Eu não cuidava bem dele. Era difícil entender como algo laranja podia ser chamado de dourado. “Melhor que morra”, eu pensava. Que deixasse de existir. Quem sabe, assim, a dúvida também sumiria. Mas a dúvida não se foi quando o peixe morreu. Maldito peixe. E Roberta não deixa de vir às terças dar comida para ele. Antes só comesse nas terças, mas descobri que os outros também o chamam de senhor peixe.

***

Estão falando que meus pulmões e meus rins não precisam mais funcionar. Perdi a noção do tempo. Não sei mais quando é terça-feira, porque Roberta não vem mais. Maldito peixe. Continua ali. Como? Roberta não vem mais. As visitas começaram a ficar frequentes outra vez. Olham para mim como eu olho para o peixe. Alguns me perguntam coisas que não escuto bem. Quero saber de Roberta sobre o dourado do peixe laranja. Roberta não vem mais. Ninguém vem mais de verdade, eu acho.

***

É só um quarto e agora está bem escuro. Não há poltrona, mas mudaram o criado-mudo de lugar. Agora sou eu, a cama, as parafernalhas cansadas, os muitos tubos e o aquário sobre o criado-mudo. Maldito peixe. Ah… e há uma janela. Hoje eu sei que há uma janela. O quarto é bastante escuro e a única fonte de luz escorre para o aquário. Maldito peixe. Ei, espera aí. Eles estão entrando. Estranho. Nem olharam para mim. Geralmente olham para meus rins e pulmões postiços e dizem coisas desinteressantes. E Roberta veio! Mas chora. Um deles está colocando um crucifixo no lugar onde antes ficava o relógio. Roberta chora. Maldito peixe. Estão levando o peixe! Oras, como assim? Trocaram o peixe laranja por um crucifixo fajuto? Nem perguntaram se eu queria reaver a fé. Não há espaço para fé, só para a dúvida que me acompanhava há tempos: por que dourado? Ei. Roberta. Ei, olha pra mim. Isso, chega mais perto. Como podiam chamar aquele peixe de dourado, Roberta? Pare de chorar e responda. Como? Droga. Levaram mesmo o peixe. Ela não escuta, ninguém escuta.

***

Acho que falavam a sério sobre desligar meus pulmões e rins. Estão cercando a cama e Roberta chora como chorou no dia em que disseram sobre meu cérebro e o pouco oxigênio. Ela é linda. Saíram ilesos do capotamento, ela e o João. Dizem que eu fiquei todo arrebentado. Aí, durante uma das inúmeras cirurgias, nada de oxigênio para o cérebro. Roberta está chorando copiosamente e levaram o peixe sem ao menos responderem como um peixe laranja pode ser dourado. Então desliguem logo tudo isso.

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Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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