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Conto

Tomou Benzetacil

Foi uma aventura. Garganta maldita. A febre criou uma aura de dorzinha durante todo o trajeto de casa até o hospital. No pronto-socorro tinha gente pra cacete, ou eu tava só delirando. Senti-me no inferno de Dante, porque aquelas televisõezinhas que informam as senhas num determinado ambiente só serviam para levar para um outro lugar com mais televisõezinhas e senhas. Todas as pessoas com quem conversei lá me desejavam melhoras no final de suas falas, mas não soavam verdadeiras, diziam aquilo como quem pede chicletes em banca de jornal. Ou cigarro picado. Eu podia estar delirando. E Débora já tinha cantado a pedra: cê vai ter que tomar benzetacil. Só queria ir pra casa e ficar de boas. Daí, finalmente, a médica de plantão — que usou a luz do celular para averiguar minha garganta vermelhona — me atendeu e perguntou o que eu preferia, tomar comprimidos ou injeção. Débora estremeceu quando olhei nos olhos da mocinha de jaleco e falei com calma: injeção. Sou desses. Ainda questionei se tomaria num dos braços. A médica, jovenzinha e maquiada, vacilou na palavra “glúteos”. Deve ter pensado rápido na infantil “bumbum” e descartou a ideia, assim como descartou a curta e seca “bunda”. Preferiu a sobriedade de “glúteos”. Respeitei. Mais cadeiras e televisõezinhas, só que dessa vez um enfermeiro disse que me chamariam pelo nome. Débora estava impaciente. Ela fica assim, meio que sentindo agulhas espiando pelas frestas e sombras. Em quinze minutos falamos de pessoas que morrem pela insalubridade do pronto-socorro, de como é possível Pablo Vittar esconder tão bem o pênis em maiôs e sobre a dor que eu sentiria na injeção. Opa. Como assim dor? Débora me disse que doeria na alma. Pois eu falei pra mim mesmo que não teria alma. Daí uma enfermeira chegou carregando tudo o que precisava para aplicar a coisa em mim. Prestei atenção em suas mãos, porque os dedos de quem brinca com agulhas e corpos de terceiros devem ter habilidade e leveza de bailarinas do Bolshoi. Ela tinha uma pinta no polegar direito e foi tudo o que consegui descobrir sobre suas mãos. Quando assustei já estava num lugarzinho de dois metros quadrados. Havia uma maca e uma mesinha. As cortinas verdes com o nome do hospital repetido num padrão diagonal eram tudo o que me separava do resto. “Você já tomou benzetacil, Marcos?”, ela perguntou. Vi o líquido branco e espesso dentro da seringa. Lembrei daquela música do MC Serginho, sobre o cara que vai tomar a mesmíssima injeção, porque seu leite estava estragado. “Puta que pariu, foi tomar BEZETACIL”. Não mencionei a lembrança musical. Falei que nunca tinha tomado. “Tô perguntando, porque dói”. Eita. Mais uma com essa. “Dói como? Queima?”, perguntei. “Só dói”, ela respondeu. Daí falou que eu podia deitar de bruços ou ficar numa posição ridícula, apoiado na maca com os cotovelos. Escolhi a primeira opção depois da demonstração que ela fez da segunda. Puxei a calça de moletom e emendei um “tá bom assim?”. Ela disse que estava. Era hora. MC Serginho no talo na minha cabeça e a mocinha só nas preliminares em meu glúteo. Pinçou um bocado de carne ali e mandou ver. Picada. Líquido entrando. “Queima um pouco, mas tá de boa”, eu falei. Ficou meio dormente também, tipo quando você bate um músculo numa quina. E foi isso. “Nossa, cê tá de parabéns”, ela falou. Há algo de revigorante e de massagem no ego quando escutamos um parabéns de uma completa estranha estando com as nádegas de fora. Mas ela não estava surpreendida com a beleza do meu traseiro, e sim com o fato de eu não ter me retorcido feito uma enguia e pedido misericórdia “como tantos homens por aqui”, ela ressaltou. Ou só quis disfarçar. Eu tenho de fato uma bela bunda. Juro.

Tags : contohospitalhumorinjeção
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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