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Reflexão

Você é um introvertido e só quer ir para casa

A história pode e irá se repetir num sábado qualquer. Imagine: já é quase noite e você está em seu quarto, debaixo das cobertas, lendo um livro sensacional ou assistindo a um filme que poderia nunca acabar de tão bom. Seu gato está deitado ao pé da cama, um tipo de troféu que representa toda a situação feliz. Só falta algo gostoso para beliscar e você já ensaia uma incursão à cozinha quando, do nada, surge a mãe revoltada — pode ser o pai, a irmã mais velha, a tia-avó — querendo saber por que cargas d’água um(a) jovem está em casa em pleno final de semana, por que não sai com os amigos, por que não arruma um(a) namorado(a), por que passa tanto tempo enfurnado em casa, por que não desliga o computador e por aí vai.

O gato se levantou e agora você não sabe se vai conseguir o petisco na cozinha. Também esqueceu em qual parágrafo do livro estava. Pode ter que retomar o filme de onde parou, isso se conseguiu congelar a imagem e não está tendo pequenos spoilers graças ao parente que te fez sentir mais uma vez a grande ovelha negra no mundo das ovelhinhas de algodão, aquelas que consideram a morte ao não sair de casa num sábado à noite.

Introversão

Se a situação descrita acima soou um tanto familiar, talvez você seja uma em cada duas ou três pessoas no mundo que são consideradas introvertidas. Isso mesmo. Susan Cain, autora do ótimo O poder dos quietos, diz que de um terço à metade da população mundial pode ser considerada introvertida. É bastante gente numa sociedade que quer porque quer recompensar desde cedo apenas os que estão sempre prontos para socializar, os que gostam de fazer networking, que se entediam muito ao não fazer nada, os que são figurinhas fáceis em todas as festas, os que saem de casa nem que seja só para ver gente.

Mas que diabos. Já passei por inúmeras situações chatas por não compactuar com o ideal da extroversão. Eu sou um introvertido de carteirinha e estou aqui hoje para apresentar 4 coisas que introvertidos sempre escutam e que precisam de resposta:

1. Você tem que sair de casa e deixar de ser antissocial!

Não, não preciso sair de casa.

Para mim e para o você hipotético ali do início do texto, não há coisa melhor que curtir um bom livro ou um bom filme em nossos respectivos cantos. Passar horas desbravando o mundo aberto de algum jogo no computador também é ótimo. Perfeição seria fazer isso tudo enquanto chove lá fora. Mas isso não quer dizer que não gostemos de pessoas, só apreciamos a coisa em doses menores. Preferimos a companhia de poucos amigos ao grande evento lotado de indivíduos do trabalho ou da faculdade. Não sei se há um nome para aquele misto de culpa e alívio ao conseguirmos sair de uma festa qualquer. Festa esta que basicamente só comemos, conversamos com as pessoas que já conhecíamos e que estavam perto do lugar que escolhemos para sentar e, na maior parte do tempo, ponderamos se já era um bom momento para ir embora. Porque realmente cansa a interação cavalar e fora da nossa concha. E o mais importante: introvertidos não são antissociais. O comportamento antissocial é aquele que de alguma forma vai ferir pessoas ou ferrar com o bom funcionamento da comunidade. Um cara que chuta cachorrinhos na rua ou que joga pedras nas janelas do vizinho é um antissocial. Alguém que recusa convite atrás de convite para a baladinha top não está fazendo nada além de preservar energia para outras coisas, pois um introvertido precisa mesmo recarregar baterias depois de interações. A Netflix só é o que é hoje em dia porque nós existimos.

2. Você deve ter algum problema para gostar de tanta solidão.

Talvez do mesmo jeito que o extrovertido ache uma porcaria ficar sozinho, eu ache uma grande e fedorenta merda estar dentro da boate barulhenta e apinhada de seres humanos. E é aqui que devemos diferenciar outras duas coisas importantes ao falarmos sobre introversão: solidão e solitude.

Solidão é algo muito ruim de ser sentido por qualquer pessoa. Alguém pode estar na boate barulhenta e apinhada de seres humanos, mas estar completamente só. A solidão é imposta às pessoas, faz com que elas não se sintam importantes para ninguém ou relevantes para o mundo. A solidão dói, porque a sensação é de punição por sermos apenas nós mesmos.

Já a solitude, por outro lado, é algo bom de ser sentido. Nela você também está só, mas por sua escolha. São em momentos de solitude que o introvertido recarrega as energias, entra em contato com todos os seus pensamentos e planos e questionamentos. É quando pode estar com ele mesmo e trabalhar sua criatividade, repensar e reforçar seu modo de enxergar o mundo, a vida e sua relação com os outros. Sem tais oportunidades é muito comum que o introvertido desligue, fique embotado para todo o resto. Perdi o número de vezes que disse“não quero sair de casa hoje, já saí ontem”, exatamente para preservar a solitude necessária para continuar funcionando.

Então, não. Eu não tenho um problema por gostar de ficar sozinho. Até um extrovertido precisa de momentos de solitude.

3. Mas você é estranho. Não fala nada.

Bem, eu poderia sempre devolver essa com um “e você que não cala a boca?”, no entanto outra característica comum em introvertidos é pensar muito antes de falar qualquer coisa. Agir assim resulta em bastante silêncio e observação, ou vice-versa. Daí o monte de gente confundindo tanta ponderação com mau humor ou achando que somos tímidos. É inegável que podemos ser, sim, muito acanhados, mas timidez não é condição sine qua non para a introversão. Inclusive algumas pessoas podem se surpreender com a verborragia de um introvertido sobre determinado assunto, só não esperem a mesma empolgação para conversar sobre picuinhas. Gastar tanto tempo em solitude para ter que debater sobre o clima ou sobre a última separação das celebridades é de doer.

Em geral acham que os introvertidos são estranhos porque não falam nada, mas passam de estranhos a uns chatos depois que tentam transformar uma conversa trivial em algo muito maior e profundo.

4. Você poderia fazer um esforço para ser mais agradável.

Será?

Engana-se quem acha que aos introvertidos estão reservados apenas os papéis subalternos em um mundo moldado para os extrovertidos. Muitas personalidades internacionais, das mais variadas áreas de atuação, ao contrário da expectativa de várias pessoas, foram e são introvertidas. Nós somos considerados ótimos ouvintes, escritores, planejadores e possuímos grande aptidão para insights. Podemos ser grandes oradores e líderes — Bill Gates está aí como prova. Claro, não há uma regra para isso tudo e não estou puxando sardinha para o meu lado, mas algumas características comportamentais facilitam bastante o alcance de algumas habilidades. Uma pessoa presa por vontade em um universo só seu pode ajudar na resolução de problemas antes considerados complexos até mesmo para um grupo considerável de trabalho.

O fato é que me recuso a tentar ser agradável, pois isso no fundo significaria ser algo que não sou: um extrovertido. Já é bem difícil ser o cara que escolhe O Escafandro e a Borboleta em detrimento de Velozes e Furiosos como filme a ser assistido entre primos de terceiro grau. Já foi muito pesado ter que fingir interesse por algumas coisas só para não ser um estraga-prazeres. Muitas vezes me senti envergonhado e tendo que pedir desculpas por ser um introvertido. É quase como se a humanidade fosse construída para um fim extrovertido, com tipos de felicidade que só se encaixam em vidas extrovertidas, só que na prática isso é uma grande balela. Minha solitude, meus livros, meus filmes, meus dias chuvosos e todas as conversas que tenho comigo mesmo e não compartilho com tanta facilidade, tenho certeza, essas coisas têm valor. Assim como sei do imenso valor das habilidades que extrovertidos possuem e que eu nem passo perto de ter.

O que pretendi com este texto foi compartilhar um incômodo que às vezes vejo muitas pessoas ao meu redor também sentindo, mas não sabendo colocar em palavras. Aliás, não só compartilhar o incômodo, mas desnudar um preconceito bobo que ainda deve persistir. E dizer ao final:

Não é tristeza, não é raiva, mau humor ou depressão. Você é um introvertido e só quer ir para casa.

Tags : introversãoreflexãorelacionamentossolidãosolitude
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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