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Crônica

Deixando para amanhã o que eu nunca vou fazer

A segunda-feira chegou e eu bailei com um clichê: aproveitar a nova semana para desengavetar e colocar velhos planos em prática.

Bem, talvez elevar a planos seja exagero. Faz parecer que eu estava adiando grandes projetos. Na verdade só me cansei de olhar para as roupas emboladas no guarda-roupa, para o pandemônio de arquivos em meus vários drives físicos/virtuais e sempre prometer a mim mesmo que arranjaria um tempo para organizar tudo. E esta cobrança vinha engatada com outras: preciso arrumar minha escrivaninha e as pastas com documentos; preciso limpar a lavanderia; preciso detalhar meus gastos para poder investir o dinheiro; preciso — nossa — ler e assistir e desbravar todos os favoritos salvos no meu navegador de internet desde sabe-se lá que ano.

A deusa Procrastinação

Dei início a um ritual. Esperei a esposa sair de casa, pois decidi que o empreendimento demandava total atenção — o que no final das contas impediu que eu começasse a mudança na sexta-feira, dia em que ela foi viajar, já que isso arrebentaria com a magia posta de que só há valor na transformação se ela coincidir com o início da semana. Whatever. Coloquei o despertador para tocar às 06h45min de hoje, segunda-feira. Daí, após o terceiro ou quarto botão de soneca conquistado, decidi levantar e ir direto para a frente da escrivaninha. Peguei papel e caneta e comecei uma listagem. Acabara de escrever o quinto item quando tive o primeiro déjà vu deste texto: eu já tinha feito aquela mesmíssima lista. Abri a gaveta, vasculhei a bagunça e encontrei a maldita. Seria ironia achar uma lista de afazeres dentro de uma gaveta zoneada e ter como primeiro tópico “organizar as gavetas”? E na antiga lista também estavam a urgência dos arquivos nos drives, dos favoritos a serem desbravados, dos documentos etcétera. Resolvi tomar aquilo como um sinal de produtividade, de antecipação sem planejamento. Poderia riscar “fazer a lista” de uma lista imaginária, pois já tinha uma prontinha. Progresso puro. Era só botar a mão na massa. A gaveta já estava aberta e esperando a tal organização.

Então resolvi tomar um banho.

Procrastinação e tristeza

Chamem-me de procrastinador, eu aguento. A mania de empurrar coisas com a barriga é velha conhecida de todos nós. Só mais cinco minutinhos de sono, fazer aquele trabalho para a faculdade — que foi marcado há um mês — somente no último dia do prazo, lavar a roupa apenas quando não se tem uma mísera cueca limpa. Tudo isso é compreensível quando enxergamos a lógica simples que existe em querer evitar ao máximo tarefas muito chatas quando se tem algo muito melhor para fazer. Mas e quando deixamos para depois coisas que aparentemente não se encaixam no que valeria a pena deixar para depois? Tipo, coisas boas mesmo. Por que deixar para depois — e muitas vezes não realizar — aquilo que queremos? Comecei a pensar nisso depois do segundo déjà vu deste texto, quando a segunda-feira já estava em sua nona hora e eu decidi inverter a ordem da lista para tentar riscar o último item: os favoritos imersos em teias de aranha.

Deixei os favoritos como última atividade, porque ali estavam coisas que seriam mais legais de mexer do que as quinas empoeiradas de uma lavanderia. Tudo quanto era filme, coluna de escritor, artigo científico, site interessante, vídeo do YouTube, reportagem, imagem, jogo, entrevista, documentário e por aí vai eu adicionava aos favoritos para assistir, ler, visitar, jogar, ver ou apreciar depois. Milhares de abas — sem exagero algum — do puro sumo daquilo que me é caro pra caralho. Criei pastas para dividir o material por área de interesse e lá fui eu, desbravar os favoritos. Com quinze minutos de atividade, o tal do segundo déjà vu: eu já tinha visto aquele mesmíssimo link. Era a página de um filme. Oras, que coisa. O problema é que a repetição de links que me interessei e guardei para assistir, ler, visitar, jogar, ver ou apreciar em outro momento da vida foi enorme.

“Mas que merda.”

Eu estava há anos protelando meus prazeres. Foi triste perceber as repetições, pois pareceram pedidos inconscientes de atenção. Sério. Foi bem triste. Pior ainda: os links quebrados ou que não existiam mais. Guardei algo para depois e que se perdeu para sempre. Qual a razão de procrastinar aquilo que é importante para a gente?

Procrastinação e adultez

Parece que é só virar adulto e tudo o que é importante fica para depois. Tudo balela. Espalham por aí um sem-número de condições e ritos de passagem para a idade adulta: faça dezoito anos, cresça barba, menstrue, aprenda a dirigir, perca a virgindade, conclua o curso superior, arranje um trabalho, case, tenha filhos, pague contas. Tudo balela. Não há espaço para aquilo que de fato apreciamos no meio de tantas certificações de adultez. Se não tomarmos cuidado, ser adulto se transforma numa eterna promessa. Mas do quê?

Há alguns anos li O deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. O terceiro e último déjà vu deste texto veio quando vi que já tinha escrito algo parecido com o que escrevo agora, partindo do livro do autor italiano, e nem sequer me considerava um adulto:

“A edição que meu pai esqueceu em minhas mãos tem a apresentação de Ugo Giorgetti. O cineasta diz:

‘O que nos conta O deserto dos Tártaros? Um jovem militar é designado para servir numa fortaleza nas montanhas, solitária, quase esquecida, que em tempos remotos foi importante defesa contra os Tártaros, que costumavam chegar pelo deserto que se estendia ao longo do vale. Nesse lugar isolado, fincado entre altas escarpas, a função de todos era estar preparado para o dia em que os Tártaros voltassem.’

O negócio é que o jovem vai para esse forte e o tempo passa e os Tártaros não vêm. Sua vida inteira passa e ele manteve os olhos no horizonte esperando. Pessoas morrem, pessoas vão embora, pessoas novas chegam ao forte e ele continua esmiuçando o encontro do céu com a terra. Giorgetti diz que o livro fala da vida como uma aposta na imobilidade.”

Acho que me tornei adulto quando constatei que nunca leria todos os livros que existem e muito menos os que vão existir, pois ser adulto nada mais é que confrontar nossa finitude com um sorriso no rosto. Reler as partes que destaquei d’O deserto dos Tártaros há tanto tempo e perceber que estava colecionando pequenos prazeres para a posteridade me fez sentir um pouco de vergonha de mim mesmo. Eu estava preso na imobilidade que Giorgetti sugere, preferindo checar meus e-mails e feed do Instagram, resolver questões de trabalho e dos outros a fazer valer o que tinha aprendido com o livro.

Agora, com um pouco de vergonha na cara e com a lembrança dos Tártaros mais fresca na cabeça, sei que não exagerei ao chamar de planos tudo aquilo que pretendi fazer no início dessa semana. Espero que vocês — caso também estejam esperando algo inominável — também escapem de um forte italiano no meio do deserto. Viver não cabe ali.

Tags : adultezcrônicaliteraturaprocrastinaçãoreflexãovida
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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