close
Conto

Um homem sem máscaras

Não vai dar certo, não tem como dar certo. Falei com Felipa exatamente isso, não vai dar certo, não tem como dar certo. Ela me xingou, disse que fiquei velho e ranzinza, pois eu digo que sempre fui assim, desde muito jovem, mesmo antes de nos conhecermos. Ela sabia, não tem nada a ver com rabugice, nada! É sobre apontar o dedo para aquilo que merece ter um bom dedo apontado. Olha lá, por exemplo, aquela fila de espera para pegar o ônibus, abarrotada de gente. Olha lá aquele palerma sem máscara a um braço de distância — um braço curto, tome nota — daquela mocinha com a máscara que tampa apenas a boca. Como alguma coisa pode dar certo por aqui?

Ontem, enquanto passava o café, liguei a televisão. A ideia era que o aparelho funcionasse como música de fundo. Música ruim, eu sei, mas o nosso rádio está com algum problema indecifrável há algum tempo. Já fucei, lembro-me de perguntar para Felipa se ela percebeu algo de errado com a porcaria, só que a resposta à época foi negativa. Larguei para lá. Então, ontem, eu liguei a televisão para passar o café com algo fazendo barulho na cozinha. Acordei com vontade de tomar um bom desjejum, bem ao estilo daquelas paradas norte-americanas à beira da estrada. Fritei bacon, estalei dois ovos e a água ferveu. Coei o café, nada de açúcar, claro, mas peguei dois pães dormidos e besuntei tudo com mel. Não é assim que eles fazem lá em cima, hein? Como nos filmes. A clientela sentada em poltronas de couro, balcão longo, uma atendente de avental branco e camisa rosa perguntando se você quer café, e então você lota as panquecas com mel, ou algo como mel, e toma café preto e come bacon com ovos. Eu não gosto de panquecas, mas estou divagando. Liguei a televisão ontem e me arrependi, pois os minutos de feitura do meu café da manhã de norte-americano foram invadidos por reprises de gols. Reprises de gols, Felipa, eu gritei para ela escutar, voltaram com o futebol! O âncora do jornal matinal mal acabara de atualizar os números de mortos com ar grave, porcentagens e gráficos. Daí, em seguida, anuncia os gols da noite anterior. Desliguei a televisão, ainda segurando a xícara de café. Apontei o dedo para a tela e repeti por três vezes, veemente, que só voltaria a ligá-la quando toda essa porcaria passar.

Agora, hoje, debaixo desse sol quente, estou na rua evitando imbecis. Estou cercado por imbecis. Felipa odiava que eu falasse isso, que eu pensasse isso, mas o que posso fazer? É uma verdade. Palermas, tontos que não conseguem seguir instruções sanitárias básicas. Lá vem outro, olha para isso, uma porta. É uma porta. Caminha duro feito uma porta e deve pensar tal qual uma porta. Fez um buraco na máscara para comportar o cigarro. Felipa não vai acreditar nisso. Um homem, deve ter a minha idade, pouco menos, inutilizou a máscara para poder fumar. É o cúmulo. Não basta ser imbecil, ele precisa ser imbecil com criatividade. Sair de casa não parecia uma boa ideia pela manhã por conta do calor, e só faz piorar a cada transeunte suado e criativo. Está quente. Quente como a cozinha do inferno e eu não confio em restaurantes abertos. Não, não senhor. Não confio em quem possa me vender uma garrafa de água, um refrigerante com bastante gelo. Felipa trabalhou em restaurantes, na cozinha de restaurantes e me contava histórias escabrosas. Nunca mais olhei para um garçom da mesma maneira. E agora? Como isso aqui pode dar certo, me diz, como esse lugar pode ter jeito se o cidadão não pode confiar em quem traz sua comida?

Ontem, como disse, acordei com vontade de um café da manhã diferente. Muito por conta de Felipa, pelo trabalho que teve nas cozinhas. Quando mais moça ela foi uma dessas atendentes de restaurantes lá nos Estados Unidos, uniforme e cafeteira na mão. Temos uma foto lá na geladeira de casa. Uma estrada sem ninguém e ela na frente do Hungry Jim, a melhor panqueca do oeste americano. Foto de 1959, no Oregon. Montanhas e árvores coníferas. Felipa sempre falou que as cozinhas de lá eram limpíssimas, mas não atribuo o esmero sanitário ao país, não, não mesmo. O problema está na época. Se o Hungry Jim ainda existir para aquelas bandas de lá, tenho certeza, a garçonete passará carregando a cafeteira em uma mão, bem como minha Felipa fazia, mas não vai oferecer nada a ninguém, já que a atenção zumbilesca estará na outra mão, a portadora do telefone, coisa das mais imundas. E é assim por aqui também. Olha, ali, os entregadores. Todos vidrados em suas telas. Compreendo a situação, mas a deles. Vincularam seus trabalhos aos malditos telefones. Mas e aquelas duas jovenzinhas ali, na praça? Ei, tenho vontade de gritar, conversem entre si, larguem os telefones e conversem entre si, mas de longe, por favor, pois o mundo está acabando!

Felipa quis um telefone e comprou. Eu fui contra. Telefone uma pinoia, não é? Ninguém usa esses tijolinhos como telefone. O vendedor ali da banca, olha lá, em frente ao supermercado, está tirando fotos abraçado com o empacotador. Ambos de máscara, fazendo graça, mas abraçados. Não tem como dar certo. Um telefone não deveria tirar fotos, foi o que eu falei para Felipa. Ela ignorou. Tentou me dar um de aniversário no ano passado, me deu, na verdade, mas não abri a geringonça. Guardei no maleiro. Não vou compactuar com a idiotia generalizada. Felipa chegou a me perguntar se eu a achava idiota, me mandou virar o amargor para lá. Eu fiquei calado.

Mas, como ia dizendo, é um problema de época. Tudo bem ter a curiosidade como Felipa teve. Ela viveu. Ela sabia o caminho. Ela encarou o Oregon aos 18 anos de idade, pombas. Minha Felipa podia fazer o que bem entendesse. Mas não tem como dar certo, não vai dar certo. Não com essa juventude, não com esses palermas sem máscara me pegando de surpresa. Metro e meio de distância, tenho vontade de berrar, metro e meio de distância, no mínimo! Sair na rua hoje em dia é isso, ficar atento aos gatunos e aos incapazes de usar máscara e manter distância. E aos jovens. O jovem tem que acabar. Felipa me disse certa vez que meu pai deve ter pensado a mesma coisa quando me viu passar brilhantina no cabelo pela primeira vez. E, completou, caso o desejo do meu pai fosse atendido, ela voltaria para o Brasil e não me encontraria. Fiquei calado. Mas hoje não ficaria, responderia que o jovem hoje é um zumbi, sim, um verdadeiro escravo da pequena máquina caça-níqueis em seu bolso. Diria que o jovem tem que acabar, pois não sabe usar máscaras em uma época e em um mundo onde usar máscara, gesto tão simples, mesmo no calor infernal desta tarde, calha em ser a diferença entre a vida e a morte de alguém que, por exemplo, só tem curiosidade em saber o que fazem os jovens de tão divertido com os tais telefones. Não tem como dar certo, não vai dar certo.

Já é o terceiro mês sem chuva pelas bandas de cá. Felipa dizia que no Oregon chovia praticamente o ano inteiro. Inviável, na minha opinião. Ambas as situações, três meses sem chuvas nesse calor tropical e ano inteiro de frio e chuva lá em cima. Ontem, como disse, tomei o café, mas poderia não ter ligado a televisão. Hoje completo, veja só, três meses saindo de casa também. Escuto os mais variados protestos de filhos e netos. Uso protetor solar, não se preocupem, digo para os filhos. Para os netos, jovens, não digo nada. Ah, sim, para me comunicar com eles acabo usando o tal telefone. Mas pouco, bem pouco. Fazemos chamadas de vídeo. Três meses sem chuva pelas bandas de cá, três meses fazendo chamadas de imagem por um aparelho que não deveria se chamar telefone. Três meses saindo de casa, também, evitando os palermas e tentando sem sucesso não ser amargo no caminho. Toda vez que cruzo o portal aqui do cemitério eu me lembro daquele documentário do Masagão, do nome do documentário, quero dizer. “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”, no entanto não sei se Felipa estará mesmo esperando alguma coisa. Eu já não espero nada, de ninguém. Só da chuva que não chove desde que tudo acabou.

Conto publicado na edição 89 da Revista Exclusive.

Tags : amorcontocovid-19máscarapandemia
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

Leave a Response