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Conto

Eu quero quebrar essas xícaras

E lá vai ela, de novo, toda maquiagem, panos e pressa. Quanta urgência, quanta gana. E pelo quê? Não sei, não faço ideia do que ela anda caçando fora daqui ultimamente. E olha que hoje é sábado. Isso, não esquece a máscara, Josiane. Mas sugiro uma troca nas estampas. Quem sabe aquela com cachorros, que tal? É, isso mesmo, nem olhe para mim. Não pergunte se estou com fome, se estou bem. Se tenho água. Oh, pela deusa Bastet! Será que ela me deixou sem água outra vez?

Bem, o pote de água está quase cheio e tem areia nova na caixa. Estranho. Acordei com ela varrendo o apartamento. Estava cantarolando. A cama também está impecável. Lisinha. O que está acontecendo, Josiane? Você não acorda cedo. Você não estica os lençóis ou arruma os travesseiros como o povo rico nas séries da Netflix. Você não canta, Josiane. Nem preciso pular na bancada da cozinha para saber que não há uma colher suja na pia, mas vou pular mesmo assim. Manter o foco. A meta é derrubar o que der para derrubar, rasgar o que for rasgável até você voltar para mim. Vamos lá, hoje será o dia, Josiane, o dia em que você vai desejar falar minha língua e perguntar o que há de errado comigo, por que estou tão arredio, rebelde, ingrato. Vamos lá, vamos à bancada.

Pratos enfileirados no escorredor, pratos que nem sujos estavam. Aqueles grandes. Talheres e copos alinhados ao lado dos pratos. Você calculou até a organização do escorredor. Josiane. Tapetinho limpo no chão da cozinha, a coleção de temperos que ganhou de presente da sua mãe à mostra. Ora, ora, ora. Está aí, os potinhos de vidro com  páprica doce e pimenta branca serão os primeiros. Você nem sabe cozinhar, convenhamos. Aqui vai um. E agora o outro. Ops, que pena. Pois é o cheiro de dente cariado da pimenta branca que você vai sentir quando voltar. Que empesteie a cozinha, a sala e chegue ao quarto. Eu poderia levar um pouquinho para cada cômodo, só que aí as minhas — como vocês chamam? —, impressões digitais me denunciariam. Não, deixemos assim, o pote de pimenta espatifado no tapetinho e o outro debaixo da geladeira.

Quem vê, por exemplo, a porta da geladeira com tantas fotos minhas e nossas, Josiane, não imagina o que tenho passado. Eu, logo eu, que tentei ao máximo fugir do lugar de adoração que você tanto insistiu em me colocar. Sim, larguei a liberdade da casa da sua mãe, as noites de banho de lua, as loucuras dos telhados alheios. Sim, larguei tudo e vim para cá contigo. Quem vê as estátuas egípcias, as xícaras de porcelana que você trouxe da viagem a Alexandria com os desenhos imitando as estátuas —, tão parecidas comigo, você diz —, quem vê os quadros e a sua tatuagem, Josiane, será que desconfia dos sai para lá, dos dias sem água fresca? E a tela da varanda com buracos, Josiane? Você acha que eu sei voar?

Encarei a quarentena como algo bom, uma oportunidade para que você pudesse largar mão da mania indecorosa de chegar aqui só o pó, lânguida, a mesma história se repetindo toda madrugada de sexta e sábado. Pior. Ligar para ele, bêbada, chorosa e pedir desculpas depois para mim por ser tão patética. Oh, e o vômito daquela última vez, que horror. Mas pelo menos foi a última e, veja, olhe como as plantas aqui na sala estão bem cuidadas, até a orquídea deu brotos. Olhe como as estantes são mais bonitas sem as fotos dele, apenas as minhas, as nossas.

Admito que ele até era menos pior do que os outros. Elegante, silencioso. Entendia o momento certo de ir embora. Bastava que eu sentasse naquele colo e o recado estava dado. Mas, ser patética, Josiane? Implorar atenção, áudios confusos noite adentro? Não. Aquilo foi demais e tive que agir. Servir a ser servido, decidi. Massagens em suas coxas durante as maratonas de séries, companhia para as intermináveis reuniões pelo computador. Escondia seu celular quando julgava oportuno. Parei até de deixar meus pequenos troféus de caça em seu travesseiro. Não que preso nessa caixa de cimento eu tenha muita variedade de presas, mas aquelas duas libélulas foram difíceis de não mostrar. E não mostrei. Para agora você sair assim, mascarada, dia sim e dia também, sem ao menos uma passada de dedos em minhas orelhas. Pois vou rasgar essas cortinas, vou arrebentar a espada-de-São-Jorge. Aí eu quero ver você não olhar para mim. Você não me dá outra opção.

Tive tempo para sopesar as consequências de meus atos, não duvide. Dói ver os rasgos no pano, machuca picar as folhas da planta. E não se preocupe, sei que são tóxicas. Sou precavido. Ou se preocupe, chegue atrasada e não reclame que o avião partiu. Você não quis enxergar meus sinais. Depois de meses confinados, depois de tanta dedicação e esforço meus para que você finalmente virasse gente outra vez e rompesse as correntes que a prendiam no fundo do poço de lama e álcool onde estava, você me pagou com desdém, Josiane. Quando você retornava do supermercado com as compras, lembra, esbaforida e com medo do vírus, mal conseguia se conter para me abraçar, e eu seguia o papel canino e ridículo ao te receber com festa. Claro, com cuidado para não te tocar, porque era sobre isso. Cuidado. Aí o revezamento no escritório começou e eu, juro, ficava angustiado, sem saber se você estava pronta para a vida outra vez lá fora. Parece que estava até demais, não é mesmo? Acho que vou fazer outra visita à cozinha, procurar as xícaras alexandrinas de porcelana. E, depois, o gran finale naquela cama e travesseiros tão arrumadinhos.

O cheiro da pimenta branca podia ser mais forte, no entanto os cacos espalhados e a mancha do pó já dão um bom efeito. Agora, vejamos, onde estão aquelas coisinhas delicadas? Ah, Josiane, vai ser um golpe mais duro em mim do que em você. Elas deviam estar na prateleira mais alta, com as asas apontadas para a janela. Estranho. Será que você também as colocou no escorredor, Josiane? Qual é a dessa de hoje? Cantoria, apartamento limpo e arrumação calculada de louça. Oh, ali estão duas das xícaras, no fim da bancada, perto do bule e das, oi? Caixas de chá de hortelã? Espera um segundo. Travesseiros para duas pessoas na cama arrumada com esmero. Casa limpa, cantoria. Par de xícaras e bule separados de antemão para o chá. Você voltou para ele, Josiane? Eu não acredito nisso. Que disparate! E ele está vindo para cá! Você nem gosta de hortelã, Josiane! Oh, céus, eu não acredito nisso! Tudo faz sentido agora. A ânsia para ir trabalhar, a demora na escolha das roupas e agora essa encenação ridícula da tradiçãozinha de aniversário de namoro. Você nem gosta de chá, Josiane! Eu vou fugir. Não dá mais. Não! Eu vou arranhar a cara dele. E a sua, Josiane. Arrancar suas sobrancelhas! Aí então sumo da sua vida.

Deve ser isso que vocês chamam de ódio e, ah, o tilintar das suas chaves. Já de volta. Vou correr para sala e emular uma das estátuas, a calma e altivez das estátuas egípcias de meus antepassados. Eles sim, os egípcios, sabiam nos tratar bem. Tinham cemitérios especiais só para a gente, nos cobriam de ouro e joias. Uma civilização de verdade. Só preciso respirar um pouco, retomar meu ar blasé e esperar seu espanto, aquela puxada de ar de quem não espera tanto desastre de uma vez. Isso, abra a porta e contemple. Abra a porta e que porcaria é essa, mulher? Por que está chorando? Ou sorrindo? Ah, lá vem o dito cujo também. Pelo menos está de máscara, vamos aglomerar com o mínimo de inteligência por aqui. E que trambolho de caixa é essa que ele está, oh, céus, um rabo abanando. E latidos. Eu vou quebrar suas xícaras, Josiane.

Conto publicado na Revista Exclusive #88.

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Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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