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Crônica

Pequenos investimentos pessoais

O ínfimo. O irrisório, o quase irrelevante. Há dois minutos quis me considerar um apaixonado por momentos específicos. Não basta vivê-los, pois é preciso o toque de vício, a vontade de repeti-los. Passo a vida tentando revisitar um matiz de tarde, o silêncio entre galhos e folhas de abacateiro, as ruas sem ninguém. Infindável lista.

Há dois minutos desconfio que talvez o prazer não esteja no reviver alguma coisa tal qual como ela foi, porque seria impossível, mas esteja na saudade, no suspiro do “é quase isso”. Uma experiência solitária e constante.

Buscava, há dois minutos, o mesmo trovão daquela vez. Interrompi a leitura de Barthes para mais um “é quase isso”. Ao retomar o parágrafo, o soco:

“‘[…] dei uma olhada no ‘mundo’, e esse mundo me batia na cara, tornando irrisórios meus pequenos investimentos pessoais: abusos da polícia, motoqueiros agredidos, detritos nucleares […] — tudo isso enquanto eu sofisticava longamente para saber como se fechar para produzir uma Obra Literária! Há uma espécie de chantagem permanente da Atualidade, dirigida a qualquer um que a esqueça”.

Meus pequenos investimentos pessoais, minha busca solitária e constante por momentos passados, não são nada comparados aos terrores na Síria ou às centenas de praias nordestinas poluídas com petróleo cru, no entanto cá estou eu fechando os olhos.

No final das contas, talvez essa seja uma boa definição de ser humano: ousar esquecer a Atualidade — ou Realidade, como queiram —, mas morrer de culpas toda vez que caímos na chantagem permanente para que não a esqueçamos.

Tags : Barthescotidianocrônicaliteraturamemóriareflexãosaudadevida
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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