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Crônica

Disse o corvo, “Nunca mais”

A revista Nature divulgou em outubro de 2016 o estudo de um grupo de pesquisadores da Escola de Medicina Albert Einstein de Nova Iorque sobre longevidade. A equipe da faculdade estadunidense concluiu que, apesar do aumento do número de pessoas que conseguem viver mais e melhor, a expectativa de vida humana máxima parece não sofrer alterações há um bom tempo. A hipótese é de que exista um limite natural para a gente, já atingido, por volta dos 115 anos de idade. Os supercentenários — pessoas que ultrapassam os 110 anos de vida —, considerados grandes exceções, não estão quebrando as barreiras do morrer. A possibilidade de imortalidade que desejei ao conhecer Connor MacLeod em Highlander naquele VHS que meu pai alugou, provavelmente numa tarde perdida de 1993, ficou ainda menor depois do artigo publicado. Claro que já existem outros estudiosos discordando da conclusão, mas não quero falar do debate acadêmico.

Quero entrar por outra porta.

Ao ler a chamada para a reportagem, lembrei-me da minha cabecinha infantil ignorando qualquer desdobramento ruim de viver para sempre, aquele menino autocentrado vislumbrando apenas a liberdade e a aventura, antevendo o fim das pequenas obrigações e responsabilidades escolares. Um pequeno tolo.

Ou não. Só mais um com medo do desconhecido.

Cultura e morte

Escolha o país que quiser, a cultura que quiser, a época que preferir. A morte pode ser tratada de várias maneiras. Como rito de passagem, como castigo ou como bênção, mas de duas coisas, em qualquer tempo ou lugar, ninguém escapa: a primeira, nós vamos morrer; e a segunda, ninguém sabe o que acontece depois que Hades chama. Assim como está colocado em Sobre a morte e o morrer, livro da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, famoso ao descrever os cinco estágios do luto, temer e negar o fim da vida parecem ser ações que caminham de mãos dadas com o desenvolvimento científico. E foi graças ao estudo que citei lá em cima que voltei a um pensamento, uma reclamação sem endereço, que tem muito a ver com a afirmação de Kübler-Ross sobre os avanços tecnológicos. Vou contar uma história real para poder explicar melhor. 

Morrer e não morrer

Fabrice Muamba foi um jogador de futebol inglês, nascido no Zaire, atual República Democrática do Congo. No ano de 2012, em uma partida disputada em Londres pela FA Cup entre o Bolton Wanderers, sua equipe, e o Tottenham Hotspur, o atleta sofreu um mal súbito e desabou em campo. Uma parada cardiorrespiratória, para ser mais específico. Transmissão ao vivo, estádio lotado, jogadores e torcedores chocados, muitos aos prantos, enquanto Muamba era atendido no gramado. A morte dançando ao som de um réquiem imaginário na frente de milhares de pessoas. Fabrice entrou no túnel de saída do estádio em uma maca, cercado por pessoas com jalecos fluorescentes. Não respirava. Jornais detalham que por duas vezes os médicos usaram o desfibrilador enquanto o jogador ainda estava caído em campo. Usaram uma outra vez dentro do túnel e repetiram o procedimento por mais doze vezes dentro da ambulância.

Quando eu disse que Muamba foi um jogador de futebol, não quis dizer que ele morreu. Seu coração parou de bater às 18:13 daquele dia, dentro do estádio, e voltou a funcionar no hospital, às 19:31. Foram 78 minutos de um tipo de morte. Alguns meses depois, o hoje ex-futebolista foi saudado por outras milhares de pessoas enquanto entrava no mesmo estádio, não para jogar novamente, mas para agradecer o apoio que recebera. Para virar mais um símbolo da vida vencendo a morte, graças ao esforço dos médicos e às numerosas técnicas de que dispomos hoje para evitar a tristeza inerente ao morrer. Mas, de novo, não quero entrar num debate acadêmico. Já fizeram um à época, com várias entrevistas e médicos e detalhes dos procedimentos.

Morrer e curiosidade

Quero passar por outra porta. Se eu tivesse a chance de fazer uma pergunta a Muamba, seria essa: o que você viveu — se é que cabe a palavra — durante aqueles 78 minutos?

Porque a sensação que tenho — e eis aqui a minha reclamação sem endereço — é que não há vitória alguma da vida. A morte sempre vence no final. Devíamos parar de enterrar nossos mortos como se estivessem dormindo e começar a perguntar para as pessoas que tiveram experiências de quase-morte se o Inferno de Dante foi concebido com fidelidade. Perguntar se os egípcios antigos estavam corretos ao deixar ouro nas tumbas com tanta certeza de que do outro lado aquilo seria útil. Há tantas relatos de EQM, palestras do TED falando de estados de consciência expandidos e tudo, mas não. Ficamos com o temor. Escolhemos dedicar todo um arsenal tecnológico para não termos que encarar o fato de que viver é mesmo morrer aos poucos. Não há como fugir.

Às vezes, alto da noite, pego-me encarando vãos de porta e esperando que pessoas que já foram embora daqui apareçam. Chamem de saudade, de morbidez. Eu chamo de impotência. Gastamos tempo e energia demais engordando um tabu, e a cada dia que passa tenho maior convicção de que a morte e o morrer deveriam ser encarados de outra forma. Com mais curiosidade e menos magias. Creio ser este o caminho para entendermos melhor o que vem depois.

Morrer e medo

Comecei falando de uma revista, encerro falando de outra. Em 2013, a Edge fez a seguinte pergunta a cientistas, pensadores, escritores etc.: “Com o que deveríamos estar preocupados?”. A resposta de Kate Jeffery, neurocientista, em resumo: que vamos parar de morrer. E lá ela discorre sobre. Ironicamente, a resposta subsequente era a de um físico e cosmólogo, Lawrence Krauss. O maior medo dele, em resumo: que só possamos compreender um único universo — o nosso —, ignorando a existência de outros tantos possíveis. Compartilho do mesmo medo.

P.S.: O título da crônica saiu do poema O corvo, de Edgard Allan Poe. Em comentários do próprio autor sobre a obra, ele diz: “De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?’. A morte, foi a resposta óbvia.

Tags : ciênciacrônicaimortalidademortevida
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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