close
Conto

Fofíssima #3

O ritual do banho foi seguido rigorosamente. Às 19 em ponto G. aproveitou o espelho embaçado para desenhar algo que, em seu íntimo, classificou como a caricatura da moça que estava a caminho. Corrigiu o tamanho de uma sobrancelha. Sorriu. Apertou a toalha vermelha à cintura e se preparou para aquela pequena delícia que é abrir a porta de um banheiro vaporento e deixar o ar gelado do exterior cortar o peito.

G. se acha bastante bonito após seus banhos. O caminho do banheiro até o quarto é curto, mas ele aproveita cada milímetro para dirigir pequenas cenas dignas de Almodóvar: porque desfilar o tronco nu, cheio de gotículas d’água refletindo todas as fontes de luz da casa, enquanto uma mão evita que a toalha caia e a outra seca os cabelos, é praticamente saber que a Penélope Cruz está esperando na cama. Boa cena. Talvez uma das melhores dos últimos tempos.

19 e 15. Ela já deveria ter chegado. Foi o que combinaram. Sorriu de novo, pois era praxe dos primeiros encontros brincar com os ponteiros do relógio, com os se, com os quem sabe, com os e agora. Outras pequenas delícias.

A campainha tocou. 19 e 23. G. acabara de partir o cabelo e, como da última vez, se lembrou que a imagem vista nos espelhos não era a mesma imagem que os outros tinham dele. Estamos sempre invertidos ali. Talvez puxar os fios para aquele lado não fosse a melhor opção. Como saber? A campainha tocou outra vez. Ele apressou o passo, ajeitou a gola da camisa e destrancou a porta de entrada do apartamento que dava para a sala de estar.

— Olá — disse G. — Achei que não tinha como você ficar mais bonita. Deu espaço para que a moça passasse e assim poder sentir qual perfume ela escolhera para a noite. Errou o palpite.

Ela entrou como quem já conhecesse o lugar, ignorando o elogio que G. lançara. O vestidinho preto contrastava com a brancura do cômodo. A moça deu mais alguns passos e jogou a bolsa no sofá. G. trancou a porta, girou nos calcanhares e sorriu pela terceira vez na noite.

Aí aconteceu.

Antes que ele pudesse oferecer algo ou desfiar mais de suas amenidades pré-flerte, a moça colocou as mãos na cintura e se aproximou de G. com um olhar de difícil classificação. Parou a um palmo de seu nariz. Um beijo? Já? Tudo bem. G. fechou os olhos quase que por protocolo. O beijo não veio.

Com palmadinhas leves e eficientes, a moça inverteu o lado que G. penteara o cabelo.

— Agora sim, bem melhor — ela disse, ainda tilintando as pulseiras douradas à altura dos olhos de G. — O banheiro fica por ali?

G. abriu os olhos e conseguiu menear um sinal positivo com a cabeça. A moça sumiu pelo corredor lateral, onde as câmeras de Almodóvar sempre estavam instaladas. G. ouviu a torneira da pia se abrir. Estava estático, uma estátua de mármore no meio da sala de estar branca. Eram 19 e 26 quando falou para si mesmo:

— Merda.

Tags : almodóvaramorfilmesfofíssimahumorminicontorelacionamentos
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

Leave a Response