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Crônica

Todos os cães merecem o céu

O único paraíso possível é aquele onde você acaba de botar o pé e do nada surgem doze filhotes felizes e sem raça definida, num fuzuê idêntico ao daquele cachorro que te revê após quinze minutos de solidão, só porque você esqueceu o guarda-chuva ou o dinheiro da passagem e teve que voltar para casa. Num paraíso possível, com certeza, há um mecanismo, um tipo de alarme que bum, matilhazinha sem raça definida, toda hora que você estiver a ponto de esquecer da sorte que tem por estar ali.

Às vezes sinto-me estúpido porque olho para os cachorros e eles correspondem o gesto, criam uma conexão. É estupidez, pois vou com “o que foi?”, e eles vêm com um “I fuckin’ get you, man”, mas eu sei (?) que não tão querendo dizer isso, né? Só que é difícil não decodificar dessa maneira — quase um minuto de encarada —, já que logo depois do diálogo há aquela sensação de desespero, de urgência naquele olhar que, putz, é claro que eles sabem da verdade sobre a vida e eu sei bananas. Ser cachorro deve ser o último estágio antes da elevação. Eles sim deixariam Jesus orgulhoso. Venham a mim todas as criancinhas: checado. Oferecer a outra face: checado. Amar inimigos: checado. Ou é isso mesmo, o último estágio para o infinito, ou estão apenas tentando entrar em minha cabeça. Talvez sustentam tanto o olhar pois querem que eu abra a geladeira e dê para eles o peito de frango congelado. Ficam repetindo o mantra “humano, pegue o peito de frango. Humano, pegue o peito de frango”, fazendo uma força mental desgraçada sem nunca obter êxito. Mas aí não seria canídeo, não mesmo. Se formos bastante rígidos, se observarmos o método científico e tivermos um pouco de coração, veremos que algo tão simplório não tem nada a ver com cachorros.

Vou ficar com a ideia do último estágio. O derradeiro degrau para o inominável, o último passo para um ponto de existência onde podemos escolher fazer parte de uma matilhazinha no paraíso que ajuda seres menos graduados a evoluir, ou escolher saber o que há dentro de buracos negros. Simples assim. Daí, na próxima vez que vir um cão sentado e contemplando uma assadeira de frango, aquelas televisões de cachorro, talvez seja prudente parar e olhar também. Com sorte poderei ter o vislumbre de algo muito importante. Porque todos os cães vão para o céu.

Tags : cachorrosciênciacrônicaparaísovida
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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