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Conto

Cavalos selvagens

A festa estava um tédio só e eu tinha cortado o polegar tentando abrir a última cerveja da geladeira sem o abridor. Quem some com o abridor em uma festa? Sangrei um bocado, xinguei um bocado, tanto a mãe do maldito que engolira o abridor quanto a minha pessoa. Quem tenta arrancar a tampa de uma garrafa com a unha? Deixei a água da pia correr em cima do corte antes de enrolar o dedo num pano de prato manchado — praticamente a mão inteira, sejamos francos —, catar a cerveja ainda fechada com a outra e parar sob o batente da porta da cozinha, só para contemplar o belo quadro da derrota naquela sala.

Você sabe, uma festa desanda quando a bebida acaba antes de qualquer pessoa ficar bêbada. Era o caso. De novo. Terceira vez naquele semestre. Veja, pintamos um ideal do primeiro ano de faculdade baseados em comédias enlatadas dos Estados Unidos. A loucura, os flertes, as fraternidades. Fraternidades! Pergunto-me hoje se topei participar do Centro Acadêmico por ser o mais próximo das Alphas, Lambdas e Zetas que poderia alcançar. Terá sido essa a razão? Porque no Centro não havia regras rígidas sobre as roupas que usávamos ou o fomento do senso de liderança de seus integrantes, não, não, lá no Centro Acadêmico você tinha campeonatos de sinuca com tacos irregulares, amendoim velho à vontade e uma pequena biblioteca que, de tão diminuta, cabia numa única tábua pregada abaixo do quadro em preto e branco de Karl Marx. É bem possível que se eu for lá agorinha, anos depois, os livros vão estar na mesma disposição, intocados.

Os ideais de loucura e flerte deveriam estar retratados naquele quadro de derrota, na sala de estar do apartamento de algum aluno mais velho — acho que se chamava Guilherme ou Gabriel —, mas as pinceladas do quadro eram dedicadas, em sua maioria, a frequentadores assíduos do Centro. Olhei para a esquerda e vi o ruivo, Renanzinho, calouro feito eu, rabiscando o ar com um cigarro aceso perto das janelas com vista para o campus da universidade. Quando fui até a cozinha buscar a cerveja que ferrou com meu dedo, ele já estava ali com o celular na orelha e gesticulando feito um imbecil. Não colocava o cigarro na boca, mas acendia um atrás do outro durante as intermináveis discussões com a Fê, sua namorada à època. Ou seria a Bê? É um fenômeno ainda mal explicado a contração dos nomes de alunas de Odontologia. É sempre alguma Fê, Bê ou Rê. Renanzinho se envolveu com todas, mas acabou se casando com uma engenheira civil, nome impossível de se contrair em um jaleco branco. Mas naquela noite, naquela sala, ele estava outra vez discutindo com alguma namorada pelo telefone. Era um saco, toda hora pulando fora das conversas para atender a alguma ligação emburrada. Até tentava fingir, mas todos sabíamos que aqueles cigarros desperdiçados eram os sinais claros de picuinhas amorosas.

“Por que você não chama ela pra cá?’, eu perguntei tantas vezes quando ele retornava às rodas de conversa ou ao jogo de sinuca no Centro.

“Chamar quem?”, ele respondia, “Quem? No celular? Não, era só minha irmã reclamando dos nossos pais, tá tudo bem. Vocês pularam a minha vez?”

Era o mesmo tipo de desculpa. Ríamos ou só revirávamos os olhos. Lembro-me dele à esquerda e daquela múmia do outro lado da sala, perto do toca-discos, olhando para minha mão enfaixada. Ana Clara. Menina chata, do olhar morto e que achava graça de novela das sete. Não sei se ela assistia às novelas de fato, é só jeito de dizer, estou tentando ser preciso na descrição para você. Porcaria de menina chata. Ela jurava que em um dia qualquer tínhamos nos esbarrado de propósito nos corredores da faculdade. Bem ceninha de filme mesmo, bem enlatado norte-americano, no entanto não foi de propósito. Demos um encontrão, tentei segurá-la para que não caísse, puro reflexo. Cordialidade automática, essas coisas de contrato social ou sei lá. O negócio é que, daquele dia em diante, ela encucou que tínhamos algo. Meu estômago veio parar na nuca quando pesquei sem querer ela comentando com a outra Ana, a Paula, sobre piscadelas e bilhetes que nunca trocamos entre nós. Coisas que o demônio faz quando está entediado, sabe como? A fofoca sobre você desejando a moça que não quer ver nem pintada a ouro. Aquilo se espalhou feito fogo em mato seco à época, por Deus, mas essa é outra história.

Voltando ao quadro da festa. A bebida se resumia à garrafa em minha mão, o ruivo discutia com alguma futura dentista de um lado da sala e a menina meio louca me encarava com algo que nem uma avó chamaria de sorriso do outro. Claro, havia mais gente na sala, três caras e uma veterana que nunca frequentava as aulas. Todos eram integrantes do Centro Acadêmico, creio, mas não posso dar certeza sobre a veterana. Sei que a qualquer hora do dia que você chegasse para comer, para matar aula ou jogar sinuca, ela e o quadro de Marx estariam lá. Felipa o nome dela, única Felipa que conheci na vida. Talvez eu encontre alguma foto para te mostrar. E para fugir da Ana Clara, céus, juro que ela se preparava para caminhar até mim e perguntar sobre o pano de prato, me juntei aos quatro esparramados no sofá do centro da sala.

“Renan está há vinte e três minutos ali e indo para o quarto cigarro”, disse Felipa quando cheguei mais perto.

“Como ele consegue?”, perguntou um dos caras. O Guilherme. Ou Gabriel.

“O ruivo gosta”, ela disse. “É a única explicação. Vocês sabem como é.” Eu, pelo menos, não sabia, porém ficamos calados como se soubéssemos. Ela se levantou e foi até o toca-discos. Trocou o que estava lá por um vinil dos Rolling Stones e retornou ao sofá com Ana Clara em seu encalço.

“E esse pano aí, magrelo?”, outro cara me perguntou. Desse não me recordo o nome.

“Cortei o dedo tentando abrir isso daqui.”, eu disse, balançando a garrafa e ignorando a Ana Clara.

O carinha pegou a bebida da minha mão, puxou o cinzeiro de vidro que estava em cima da mesa de centro, apoiou a tampa nele e abriu a cerveja com a facilidade que nunca fui capaz de repetir.

“Ei, veja só quem está de volta, quase meia hora depois”, Felipa disse.

Era o ruivo. Enfiava o telefone no bolso de trás da bermuda e bufava, as orelhas estavam tão rubras quanto os pelos da barbicha de bode que ele cultivava. Um dos caras ofereceu um copo. Renan pegou a cerveja espumando, se sentou ao pé do sofá, perto de onde eu estava, e fechou os olhos. Apertava-os com força e balançava a cabeça como se concordasse com o que via no escuro. Jagger repetia wild, wild horses no toca-discos.

“O que você tá fazendo, cara?”, eu perguntei. “Foi tão ruim assim?”

“Estou pensando em outras mulheres nuas como vingança”, respondeu o ruivo. “Em várias mulheres nuas por segundo.”

Olhamos uns para a cara dos outros. Olhei até para Ana Clara, incrédula, e rimos, rimos com vontade. Naquele instante, Ana não era uma mentirosa compulsiva, Renan não havia terminado com a Fê, ou Bê, ou seja lá qual era a contração da vez, e o Centro Acadêmico valia a pena.

Então, depois de treze rodadas de purrinha valendo tapas na cara, alguns beijos entre Renan e Felipa — wild, wild horses, we’ll ride them someday —, aquela passou a ser a melhor noite do ano de 2007. A melhor, meu filho.

Conto publicado no número 87 da Revista Exclusive.

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Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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