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Crônica

Só não é feminista quem não sabe o que é feminismo

Em 2008, quando eu ainda não tinha controle sobre minha compulsão em comprar livros, senti a necessidade de ler escritores africanos para além de premiados como Mia Couto, J.M. Coetzee e Albert Camus. Havia Europa e Estados Unidos demais em minha estante, quase nada dos latinos e menos ainda de africanos e asiáticos. Senti-me pobre. Pobre por comprar mais livros do que daria conta de ler e mais ainda por não ter a variedade que julgava necessária para uma boa biblioteca. Como disse, resolvi começar pelos africanos. Assim descobri Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Chinua Achebe e a maravilhosa Chimamanda Ngozi Adichie. Falemos dela.

Chimamanda é uma jovem escritora nigeriana e foi nome sempre presente em minhas pesquisas sobre literatura africana contemporânea. Como bom compulsivo que era, comprei logo os dois romances da autora até então publicados no Brasil, Hibisco roxo e Meio sol amarelo. Belas aquisições, pois além de ótimos livros — fazendo valer todos os elogios e aparições em listas —, serviram muito bem para aplacar minha sede súbita por novos horizontes literários. Mas não só isso. Chimamanda chamou a minha atenção também por ter uma certa inquietude em sua escrita, algo que anos depois tomou forma para mim e pude entender melhor.

A autora nigeriana é uma poderosa feminista.

Feminismo

Vem a calhar o que conta Chimamanda em sua palestra Todos nós deveríamos ser feministas, no TEDxEuston, sobre a primeira pessoa que a chamou de feminista:

Okuloma (um amigo) era uma pessoa com quem eu podia discutir, rir e realmente conversar. Ele também foi a primeira pessoa a me chamar de feminista. Eu tinha quase 14 anos, estávamos na casa dele, discutindo. Nós dois arrepiados com o pouco conhecimento dos livros que lemos. Eu não me lembro sobre o que era essa discussão em particular, mas me lembro de que argumentei e argumentei, e Okuloma olhou para mim e disse: ‘Sabe, você é uma feminista’. Não era um elogio. Poderia dizer pelo seu tom, o mesmo tom que você usaria para dizer algo do tipo: ‘Você apoia o terrorismo.’

Ainda hoje existem muitas pessoas que enxergam as feministas como lésbicas sujas, comunistas malvadas, infelizes que odeiam homens, mal-comidas que não querem ser mães, todas prontas para decepar pênis por aí, devassas que arrumam qualquer desculpa para mostrar os peitos e os pelos. Não é de se espantar o tom utilizado pelo amigo de Chimamanda naquela discussão e o caudaloso rio de chorume das redes sociais quando pautas feministas vêm à tona. E há quem se assuste quando digo que sou feminista. “Mas você é homem!”. Quem tem o espanto e me fala algo assim não sabe o que é feminismo.

Mulheres não são coisas

Há como explicar o feminismo de várias maneiras. Há definições — e Chimamanda dá uma definição em sua palestra — muito abrangentes e outras bastante rasas. De todas elas, acho que a mais simples e poderosa é: Feminismo é a noção de que mulheres não são coisas. Acredito que essa é a mais simples e poderosa, porque a partir do momento em que você confere a um outro alguém a qualidade de pessoa, quando você não se julga mais importante em qualquer aspecto ou mantém vantagens por conta de regras sociais, o que sobra é humanidade, característica que coisas não possuem. 

Com essa noção simples, podemos dar passos maiores.

Só não é feminista quem não sabe o que é feminismo

Ser feminista, por exemplo, é ir além do rótulo do que devemos ser e dar valor ao que somos de verdade. Eu não devo ser servido por ser homem, meu amigo não deve ser o cara que não chora na frente dos filhos, minha esposa não deve ter que escutar assobios na rua, minha irmã não deve ser preparada desde cedo para viver submissa em um casamento. Porque nada disso diz sobre nós, mas sim de como supostamente a máquina social deva funcionar.

E convenhamos:

Ela funciona muito mal quando existe quem pense que homens merecem subordinação feminina por serem biologicamente mais fortes ou por — já ouvi muito essa daqui — irem para a guerra no lugar das mulheres. A máquina social funciona pior ainda quando você sabe do que falo quando pinço alguns nomes entre milhares, como Maria da Penha, Daniela Perez, Eliza Samúdio, Eloá Cristina, Mércia Nakashima ou Marielle Franco.

Feminismo é ter a noção de que mulheres não são coisas, e em algum momento enfiam em nossas cabeças que elas são. Descartáveis, bonecas, fracas, pouca coisa, delicadas, servis, fúteis, compráveis, ranqueáveis, disponíveis et cetera

O que fazer?

O futuro é feminino

Chimamanda lançou há alguns anos o Para educar crianças feministas, um belíssimo manifesto que indico para todos quando tenho a oportunidade. Este pode ser um caminho. Ter esperança que no futuro, talvez mais próximo do que imaginemos, possamos mudar a máquina social. Quem sabe nossos netos vão abominar a romantização do ciúme, a diferença de salários para os mesmos cargos ou jornalistas fazendo pouco caso de estupros por aí, assim como a esmagadora maioria de nós hoje em dia acha a escravidão algo execrável.

Pois bem. Leiam Chimamanda, leiam mulheres. Cheguem também à conclusão de que só não é feminista quem não sabe o que é feminismo. E todos deveríamos ser.

Tags : chimamandaeducaçãofeminismofuturoliteraturalivrosreflexãoviolência
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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