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Reflexão

Homens com bolas — parte 1 de 3

Preparem o estômago, mas não por causa da fotografia de capa deste post. Sim, são dois homens — Maradona e Caniggia — num caloroso beijo. Esta imagem foi capturada em La Bombonera lotada há vinte e três anos, num clássico entre Boca Juniors e River Plate pelo Clausura de 1996, logo após o loiro anotar um tento. O Boca venceu a partida com uma atuação de gala de El Pibe e três gols de Cani. Desde o ano anterior a dupla reeditava a parceria que aniquilara a seleção brasileira de futebol na semifinal da Copa do Mundo de 1990 na Itália, adiando nosso tetracampeonato para os Estados Unidos. Os dois argentinos eram infernais dentro e fora dos gramados. Os beijos trocados por eles em campo — isso mesmo, no plural — foram tempero a mais para o final da polêmica carreira de Diego Armando Maradona Franco. Enfim, falemos de homens com bolas.

Maradona versus Pelé: homens com bolas

Pode haver um quase consenso sobre Pelé ter sido o maior de todos os tempos, mas quem tem um santuário em Nápoles e uma religião própria é o argentino. Ninguém por aqui venera Pelé como veneram Maradona na Argentina, na Itália e na Espanha. Pelo contrário. Edson Arantes do Nascimento é execrado por falar de si mesmo na terceira pessoa, é xingado por suas declarações políticas e por ter arrastado um processo de reconhecimento de paternidade anos a fio, para no final dizer que ele poderia até ser pai biológico de Sandra Regina, mas não fazia questão de se preocupar com ela. E olha que Maradona também espalhou filhos por aí aos moldes do dito rei do futebol, usou e abusou de cocaína, marcou gol com a mão para ser campeão mundial e colocou na conta de deus. Beijou homens. Mas a adoração está aí, firme e forte.

Faço a comparação entre eles por dois motivos. Primeiro: vi a imagem do beijo entre os jogadores argentinos pela primeira vez numa revista do cara que possibilitou minha estreia no universo do futebol de rua, anos atrás, algum tempo depois de ele atestar minha masculinidade aos outros garotos da vizinhança, de modo que me permitiram jogar. Segure essa informação por um momento.

Segundo motivo: alguns dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a expectativa era de que Pelé fosse o escolhido para acender a pira olímpica, no entanto o ex-camisa 10 brasileiro alegou problemas de saúde e disse que não compareceria à cerimônia. Como não é endeusado à la Maradona por aqui, claro, a internet não perdoou. Falaram que ele estava na verdade muito despeitada — sim, no feminino — por não ter sido a primeira opção da organização dos Jogos. Li em comentários de portais de notícias que, se por acaso Maradona fosse brasileiro, ele iria até de maca ao Maracanã e tiraria do bolso um cartaz de “Fora Temer” — o impeachment de Dilma ainda estava morno —, botando fogo não só na pira, porque ele sim, Maradona, era muito macho. Nas palavras da comentarista de portal, e agora ela falava de Pelé, abro aspas, “pai que não reconhece filha, pra mim, não é homem”.

Dito isso, parto para o que quero abordar: masculinidade e futebol. Apresento agora a jornada de como o futebol tentou e tenta me ensinar a ser homem. Repetindo o início do post: prepare o estômago.

Infância

Eu devia ter uns oito para nove anos quando comecei a jogar futebol. Jogávamos na rua, uma pirambeira respeitável que pode muito bem ter a ver com as duas artroscopias em meus joelhos. Porém demorei a ser convidado pelos meninos mais velhos para fazer parte da coisa. Eu “fedia a perereca e devia ter uma”, de acordo com um deles, pois ainda brincava de pega-pega com as meninas. Eles me obrigavam a buscar a bola que descia a ladeira, dando falsas esperanças que em algum dia chegaria a participar das partidas de verdade. Usavam chinelos como traves e todos jogavam descalços. Digo a vocês: descobri que não há nada melhor que jogar bola descalço. Até então não sabia disso, só ficava correndo atrás da bola que descia a rua. Mas agora podemos falar da informação que deixei você segurando há pouco, sobre como naquela tarde descobri o que era jogar bola descalço após confirmarem minha masculinidade infantil.

Depois de ter subido e descido algumas vezes a rampa de asfalto como o bom gandula que fui, o cara que me mostraria alguns meses depois a revista com o beijo entre os argentinos resolveu que eu poderia jogar. Com uma condição: tinha que aguentar socos na barriga de cada um dos peladeiros. Eu topei, porque era uma criança de oito para nove anos que finalmente ia jogar bola com a galera da rua. E, lá no fundo, não achei que dariam socos a valer em mim. Endureci o mais que pude a barriga e levei cinco socos, dois deles, os últimos, muito bem dados. Tive vertigens e suei frio e joguei muito mal, com vontade de ir ao banheiro o tempo todo. O cara da revista disse que o menino da perereca agora “tinha bolas”.

Batismo no banheiro

Falando em banheiros, o futebol não ficava só na rua, porque havia a escola. Lembro-me de estar conversando dentro do banheiro que ficava próximo ao pátio com um colega de sala. O horário seguinte seria o da nossa educação física. Alguns alunos mais velhos, daqueles que você sabe que não pode nem olhar na cara e que jogavam futebol durante todo o recreio, também estavam lá, atrasados para suas respectivas aulas. Muita gritaria e empurrões. Desde cedo aprendemos que dentro da escola há regras subentendidas sobre quem manda e quem olha para baixo. Uma hierarquia que não sei se funciona para as meninas como funciona para os meninos. Lembro-me de estar achando engraçado o fato de não tomarmos banho depois de exercícios físicos ali e irmos todos suados para as salas de aula, mesmo com três chuveiros disponíveis no banheiro. Escola relapsa.

O que importa agora foi o que aconteceu. Eu não estava olhando para baixo no momento que deveria estar olhando para baixo. Daí, um dos caras mais velhos — creio que o melhor jogador de futebol do turno da tarde —, com dois empurrões, me colocou dentro de um box junto com meu colega de sala, fechou a porta, fazendo força para que não conseguíssemos abri-la e começou a gritar para que todos ouvissem: “Gente! Duas bichinhas comendo a bunda uma da outra no banheiro!”. O olhar desesperado do meu colega — que nem era assim tão colega, sabíamos o nome um do outro, mas não tínhamos tanta intimidade antes daquilo — é algo que vou carregar para sempre. Se existia a possibilidade de uma amizade entre nós, ela morreu ali, naquele box. Quando o bully liberou a porta, saímos de lá e ele apontava para nossos calções e ria junto com os outros presentes: ”Olha lá, os dois com o pau duro!”. Eu meio que sabia e não sabia o que estava acontecendo, mas tinha certeza que estava errado e que aquilo não poderia se repetir e nem chegar aos ouvidos de ninguém.

Por ora, creio que basta.

Homens ainda com bolas, e piora

Mas já é válido dizer que o futebol monta o esqueleto de um universo masculino que engole muitos garotos por aí. Ele não se esgota apenas como esporte. Tem um quê social muito forte e não tão bem definido que passa a ditar comportamentos e respostas numa lógica bem perversinha para darmos significado à palavra homem.

Se vocês não acharam nada impressionante, se acharam exagero eu falar para prepararem o estômago nesta primeira parte, bem, esperem as próximas. São bem piores.

Tags : futebolhomeminfânciamachismomemóriareflexãosexualidadesociedadeviolência
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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