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Crônica

Por que não vou para o céu

Por que não vou para o céu. Lá se vai mais uma pessoinha para o rol de pessoinhas que mudaram a relação com este que vos fala ao descobrirem que sim, sou ateu. Elas param de conversar comigo ou começam a me tratar de um jeito diferente. Ou dão tela azul mesmo. Vão da deferência à comiseração num segundo. Da amizade ao asco sem pensar duas vezes. São os caminhos tortuosos de quem, ao acaso, nasceu e vive num país com quatrocentos e tantos anos de cristianismo enfiado goela abaixo. Uma aventura. E já achei injustão demais que tudo fosse desculpa para glorificar de pé, ou que esperassem que eu desse as mãos a completos estranhos para rezar e agradecer por coisas pelas quais não era grato — vejam, passei um terço da vida em uma escola católica. Injustão. Bastava uma ironiazinha de nada para que o rol aumentasse.

“Você está desrespeitando a fé dos outros”.

Fé de Instagram

Era injustão. Ninguém falava que estavam desrespeitando meu ceticismo. Hoje eu nem me importo. Ligo para outra coisa: não ter tido a chance de conversar com Giovanni di Pietro di Bernardone, mais conhecido pela alcunha de São Francisco de Assis. Ele, repetindo pax et bonum para quem quisesse ouvir, com pardais sobre os ombros e Clara em seu encalço, não se abalaria com minhas estocadas. Soltaria um ¯\_(ツ)_/¯ e vida que segue. Até porque a fé, por definição, tem que ser inabalável. Eu só tenho porquês e comos e nãos e pessoinhas. E elas, ao ficarem putas quando escutam questionamentos ou negações àquilo em que dizem ter fé, escancaram uma fragilidade sem tamanho, pois negam a própria fé.

Até parece, indo para esse lado, que tenho a pretensão de testar as crenças de todo indivíduo que cruza meu caminho, mas não. Jamais. Já achei injustão, já achei e fiz graça, mas hoje tenho preguiça. Porque as pessoinhas usam a dita fé como penduricalho, blush, selfie de espelho. É o cartão do clubinho dos melhores — e, nossa, como se acham melhores. No final das contas, ainda esperando Francisco para um papo, fico incomodado é com os caga-regras.

Por que não vou para o céu dos caga-regras

Tudo bem acreditar que alguém encontrou um casal de lobos siberianos de lambuja ao lado do Mar Mediterrâneo para colocar numa arca gigante: eu não quero acreditar — Carl Sagan feelings —, eu quero saber como foi possível. Tudo bem crer que uma virgem ficou grávida do espírito santo e mudou a História ocidental: eu duvido que o filho dela tenha existido, pelo menos não como pintam a figura por aí. E afirmo, com vasta documentação comprobatória, que a Terra não é plana e muito menos o centro do universo. Isso não é uma afronta a ninguém, isso não machuca ninguém, isso não exclui ninguém, isso não diminui ninguém. Quem ousa fazer tais coisas, com qualquer argumento, não entendeu nada.

Tudo piora quando uma ala do clubinho dos melhores — os tais caga-regras — resolve comemorar vitória política quando, por exemplo, escolas têm suas aulas básicas de sexualidade e reprodução demonizadas ou quando peças de teatro são canceladas por conta de determinadas falas e beijos. É mesmo uma vitória marginalizar pessoas por conta das bocas que elas escolheram beijar? Querer ditar a medida da vida dos outros com a régua da culpa católica é pura sandice.

Sempre bom lembrar que ter Jesus no coração não é condição sine qua non para fazer o bem — e é meio ridículo ter que dizer algo assim: para tanto, basta-nos um punhadinho de bom senso.

Tags : amizadeateísmocrônicarelacionamentossão franciscosociedade
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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