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Crônica

A coisa não homem

Isto aqui vai começar de um jeito nada a ver.

Tenho uma palavra favorita: nenúfar. É boa de falar, é boa de escrever. Tente. Posso esperar. Aliás, tente depois. Leia o texto primeiro e tente depois. Eu, por exemplo, destro até com a canhota, sei que já escrevi nenúfar mais do que uma vez com a mão retardada. Tente, mas depois. É uma palavra tão boa, mas tão boa, que mesmo ter um significado meio bunda dá a ela um charme a mais para ser a palavra favorita de alguém.

O problema é que para cada coisa que as pessoas amam, conseguem odiar umas oitenta e nove. Fácil assim. Pelo menos eu sou assim. Diverti-me marcando nenúfar em paredes da escola — com a mão esquerda, vejam só —, mas sinto os ossos liquefeitos quando escuto balada (pior de todas), velcro, facul ou chuleta. E olha que facul está mais para absurdo do que para palavra. A expressão “estou saindo da facul” só me faz pensar que você não deveria ter entrado ali, pois parece ser um lugar horrendo e fétido. Só não é mais fétido do que esse maldito estrangeirismo que é o tal do trollar. Trollei fulano, fui trollado por sicrano e lá se vai meu fêmur derretido pelo ralo. Maldita palavra, maldito Richard Dawkins e seus memes. Maldita, e lá se vai meu outro fêmur, modinha do mindfuck.

Outro dia pipocou em meu Facebook um pobre-diabo pretensioso. Vai saber como funciona a rede social, porque de vez em sempre brotam situações como a que vou apresentar. O dito coitado surgiu e descreveu aquilo que classificou como “o maior mindfuck que você terá em toda a sua vida”.

Confesso: parei para ler. Só que esse tipo de tropeço é vital para o bom andamento das coisas, já que força a criação daquelas notas mentais evolutivas — não entrar em apostas que envolvam língua, eletricidade e/ou pimenta, não perder apostas, não assistir ao programa do João Kléber, não clicar em qualquer coisa só porque sua mãe compartilhou. Friso: são notas mentais evolutivas. Elas são extremamente necessárias para o bom andamento dessa aventura chamada vida. Questão de pura e simples homeostase. Mas eis, mais ou menos, o que parei para ler:

“Você está aí feliz com a sua namorada, noiva, esposa, ficante ou o escambau. Ela é bonitinha, cheirosa e diz que te ama. Mas, na próxima vez que vocês se encontrarem, um pensamento surgirá em sua cabeça: ‘ei, ela não era virgem quando nos conhecemos. Se ela não era mais virgem, quer dizer que já havia transado com outro homem antes de mim’. As meninas estão cada vez mais saidinhas hoje em dia, estão começando cada vez mais cedo, então você fará as contas para saber para quantos caras ela já deu, quantos paus ela já chupou e, pior, quantos eram maiores do que o seu. É, meu amigo. Esse será o maior mindfuck que você terá em toda a sua vida. De nada. Passe para frente e estrague o dia de outro homem.”

Ou algo assim. Não tão bem escrito, mas algo assim. Espero que agora as coisas comecem a fazer sentido.

O texto — o meu, não o do pobre-diabo — poderia se chamar Mulher que não dá, voa.

E eu nunca vi mulher voando. Ninguém precisa fazer muito esforço para chegar a essa conclusão, afinal de contas somos sete ponto oito bilhões de pessoas no mundo. Dizer que essa massa humana toda foi gerada in vitro ou por brotamento é como dizer que, sei lá, insira aqui qualquer asneira que já ajuda. Tem muita gente fazendo demasiado esforço para não falar ou pensar ou cogitar, deus nos livre e guarde, que mulheres fazem sexo. E que, virgem santíssima, elas fazem e gozam. Opa. Gostam. Um lapsus linguae deveras comum, você já deve ter percebido. É como se o fato de não falar ou pensar ou cogitar alguma coisa automaticamente fizesse com que a tal coisa não existisse.

O controle sobre a sexualidade feminina tem inúmeros exemplos que são socos no coração. Há sempre algum tipo de dicotomia: limpa/suja, mulher para casar/puta, vadia/santa, mulher da vida/mulher da minha vida. Há uma enormidade cansativa de dicotomias e todas, de alguma forma, vinculam a sexualidade feminina a algo deplorável, inaceitável, inconcebível. Porque, claro, concebível foi Maria conceber Jesus Cristo sem um pingo de esperma divino, pois sexo, deus nos livre e guarde, nem com o todo-poderoso. A coisa é tão tensa, mas tão tensa, que cheguei a ouvir um cara dizer que sentia vergonha ao sair com a mãe quando ela estava grávida. Aquele umbigo saltado no barrigão de sua progenitora, na cabeça dele, era estampar o selo da péssima qualidade feminina. Era ela berrando para todos que tinha feito sexo com alguém. Era ela — palavras dele — desonrando o bom nome da família.

Honra, oras. A honra que poderia ser lavada a sangue impunemente há alguns anos caso alguma mulher caminhasse fora da linha. E por linha entenda-se cumprir todas as regras comportamentais ditadas às mulheres pelos homens. Porque veja: a honra é masculina. Se a mulher é infiel, morre. Se expressa seus pensamentos, morre. Se quiser explorar a sua sexualidade, morre. Honra masculina. Tá. Só mais uma das tatuagens que nós homens ainda queimamos em cada mulher que existe.

Este texto deveria se chamar Todas as mulheres têm tatuagens invisíveis.

Mas que todo mundo sabe muito bem quais são.

Lembro-me d’O cemitério de Praga, de Umberto Eco, e das referências aos Protocolos dos Sábios de Sião. Líderes Judeus se reunindo em um cemitério abandonado em Praga, conspirando para dominarem o planeta, fazendo planos para controlar a economia, as artes, os meios de comunicação. Tudo para conseguir o controle total da humanidade. Lembro-me do livro porque é assim que imagino as coisas quando aplicativos feito o Lulu e o Tubby — e revoltas sobre Simone de Beauvoir e redações no ENEM — aparecem por aí:

“Uma sala parcamente iluminada. Não sei onde, não sei quando. Talvez em todo lugar, talvez o tempo todo. O único ponto de luz revela um pequeno grupo de homens, desses sempre atentos à manutenção da heterossexualidade alheia, debruçados, ombro a ombro, sobre um grande pedaço de papel em uma mesa. Quem chega mais perto — só homens heterossexuais podem — percebe que estão confabulando e apontando. Medem, retocam. Os ânimos estão exaltados. No papel há um tipo de mulher vitruviana desenhada e nela estão imprimindo as tatuagens invisíveis. Marcam as pernas, a virilhas e os seios. Discutem. Puxam colchetes e setas. Colocam instruções sobre as nádegas e a cor da pele. E sobre os cabelos. Todos os cabelos. Há unanimidade sobre os pelos — quanto menos, melhor. Indicam o tamanho de saias e profundidade de decotes. Tudo naquele desenho que faria Da Vinci sofrer. Os homens riem e alguns até babam. Divertem-se com esse poder de julgar concedido por vai saber quem.”

É uma alegoria que uso, ok, mas a reunião aos moldes do cemitério secreto em Praga não é tão absurda. Mulheres são tratadas como pedaços de carne, são massacradas aos milhares pelos garranchos e apontamentos nas mulheres vitruvianas de cada mesa de boteco. Mesas que, apesar de gênese heterossexual e masculina, conseguem amplo apoio de indivíduos que não deveriam compô-las. Mas é aí que está. Uma das principais ideias dos sábios sionistas lá do cemitério, sedentos pelo controle, era causar o caos, confundir. Transformar aliados em inimigos. E é desnecessário ler Foucault de cabo a rabo para saber que nessa lógica de tatuagens invisíveis há uma relação de poder nojenta.

Esse texto deveria se chamar O clube do Bolinha tem meninas demais.

Os modelinhos de homens e mulheres são criados por uma sociedade machista. Ponto. A rua é o lugar do homem, a casa é o lugar da mulher. O dinheiro é coisa do homem, a servidão é a sina feminina. O complexo cabe ao homem, a futilidade rosa é assunto das meninas. No sexo quem atua é o homem — lembre-se da virgem santíssima —, a mulher é só um instrumento necessário. Oras, sexo, sexo, sexo. Tudo conflui para o sexo. Sim, pois os rabiscos na mulher vitruviana são bastante precisos ao dizer que:

“… damas de verdade seguem à risca todos os nossos apontamentos, tornando-se modelos de apreciação e deleite sexual masculino, mas ai daquelas que usarem tamanha libido em benefício próprio. Desviantes. Putas. Bruxas. Putas. Sujas. Baixas. Putas.”

E desde cedo começam a vender os rabiscos.

Dia 19 de abril de 1996. Dia do índio. 3ª série do ensino fundamental. Estávamos todos ansiosos, pois as aulas tinham sido suspensas para alguma apresentação. Foi uma lástima não sairmos da sala, era sempre bom sair da sala de aula. Pelo menos a professora não estava lá. A supervisora — a mesma que no ano anterior conversara comigo sobre como é errado espalhar por aí como são feitos os cachorrinhos — estava na porta tentando nos conter. Passados alguns minutos ela chama alguém para entrar: nossa professora fantasiada de índia comanche. Só faltaram a pele de búfalo e o rifle. Ridícula. Tudo a ver (não) com a história que contaria logo em seguida.

Cheia de trejeitos e entonações bizarras, ela começou a falar sobre Naiá, uma índia, lá na Amazônia, que buscou incessantemente se encontrar com Jaci, a lua. Naiá escutou dos pajés que de vez em quando a lua se escondia atrás dos morros para brincar com as virgens mais belas da tribo. Naiá queria porque queria brincar também, pois a virgem preferida, diziam, era escolhida por Jaci para se transformar em uma estrela no céu. A jovem índia, de tão obcecada, morreu afogada quando se jogou em um lago, imaginando que o reflexo da lua na superfície era a própria Jaci vindo ao seu encontro. Mas, meninas — lembro-me da professora dizendo —, Jaci ficou comovida com a atitude de Naiá e a transformou em uma belíssima flor, uma estrela diferente: a vitória-régia.

De lá para cá eu já escutei incontáveis historinhas parecidas. Todas envolvendo alguma sorte de sacrifício feminino para que a mulher seja permitida em algum lugar, consiga atingir um objetivo ou que mereça determinado homem. Tudo passando pelo crivo dicotômico do sexual. De lá para cá eu vi meninas comprarem versões da mulher vitruviana e entenderem que é proibido sentar de perna aberta, porque aí você será uma pecinha que sobe de nível no jogo machista. É uma merda ser mulher, porque a mulher virgem é a única mulher possível no imaginário corrente. E essa porcaria é vendida como sendo normal, é comprada por homens que desejam a manutenção desse normal e — por incrível que pareça —, por mulheres, aos montes, que encaram como normal serem julgadas de maneira diferente pelo mesmo tipo de comportamento dos homens. Pior: julgam todas as outras que não se encaixam no normal-passivão-uma-dama-não-comenta. Logo, no contexto, homens não precisam de um aplicativo para ranquear mulheres. O mundo machista já é um grande aplicativo e ele roda no maior sistema operacional de todos: a vida. Mas só por ser o vigente não significa que seja o melhor aplicativo. A dama de verdade, a mulher vitruviana rabiscada, está em todo lugar. Mas por que tanto abalo sísmico quando algo coloca em xeque esse mundo dito normal?

Voltemos ao cara que tinha vergonha da mãe grávida e ao meu ódio por palavras. O rapaz me contou certa vez uma coisa que gostava de fazer com os amigos quando saía para a balada. Criavam uma disputa: o ritual do oi-tudo-bem-posso-te-conhecer-três-beijinhos-você-é-linda-fica-comigo era seguido e o primeiro que conseguisse pegar cinco garotas sagrava-se campeão. O rapaz declarou que, para ganhar, em certas ocasiões, precisou de um pouco de força no braço esquerdo para prender a menina, pois, de acordo com as regras da partida, você tinha que erguer um braço para o alto — gesto da vitória — e indicar com os dedos o número da menina em questão. Sim, um hadaka-jime, uma gravata, um mata-leão na garota.

Este texto deveria se chamar A coisa não homem.

Tanto o pobre-diabo do mindfuck  quanto o rapaz que tinha vergonha da mãe: eles fazem parte de um exército desesperado. Estão ambos desesperados, clamando por pessoas que concordem com sua hegemonia heterossexual:

“Por favor, concorde comigo, eu sou macho, não sou? Concorde comigo, sua puta. Eu sou macho, não sou? Você está querendo, não está, sua puta? Eu sou macho, não sou? Eu sou um ser poderoso, claro que você quer. O poder transborda e não há nada que eu possa fazer. Eu não me aguento, não me controlo e por isso te estupro. Olho e consigo enxergar suas tatuagens invisíveis e te estupro. Se sua saia é curta demais, eu te estupro. Se sua saia é longa demais, eu te estupro, porque isso é só charme para provar da minha pica das galáxias, não é? Sua puta. Eu sou macho, não sou? Sou tão poderoso que te mato, que cago regras sobre seu corpo em nome de deus — porque sou quase um, não sou? —, em nome da moral cristã, em meu nome, sua puta.”

Esse é um trecho bem possível do pensamento de um dos rapazes que participam da brincadeira do mata-leão. Respingos da tristeza recalcada do machismo: estão todos desesperados por não saberem ao certo o que é um homem, no entanto o show tem que continuar. O exército consegue definir bem o que são mulheres, sejam damas ou putas, elas são mulheres. São submissas, pouca coisa, burras, objetos, limitadas, fracas e dependentes. Mas ao topar com a definição do masculino, só sabem dizer o que não é um homem: mulheres, por deus, não são homens. Gays não são homens. Quem não bebe não é homem. Torcer pelo outro time é não ser homem. Não saber dirigir é não ser homem. Ser brocha é não ser homem. Ser traído é não ser homem. Sentir dor é não ser homem. Tudo o que remete ao inferno dos afeminados, das feias, das gordas, das lésbicas é não ser homem. Um exército que perdeu a noção do humano.

Concluo que não existem homens no imaginário machista. Existem, sim, esses desesperados correndo atrás de um totem impossível, grande, veiúdo e incansável. Arremedos de corpos, arrogantes e hipócritas, covardes e mentirosos. Coitados que dominam a partir da misoginia, que disseminam a ideia de que homens pensam em sexo a cada dois minutos e estão sempre preparados, mas que mulheres não pensam e não fazem. Soldados desesperados e tristes de um exército que rabisca mulheres para retroalimentarem um desprezo sem sentido. Desesperados e tristes, cheios de fobia da coisa não homem, mas não têm um isso de humanidade para compreender que não são melhores que ninguém. Não veem que ser homem significa mais do que provar a todo instante e a todo custo que você consegue ter ereções.

Este texto deveria se chamar Galáxias não têm pênis ou Os homens que não amavam as mulheres, mas já usaram isso em outro canto.

Enfim.

Misóginos, machistas e machões. Assassinos e estupradores. Vocês que não enxergam problemas em piadas, porém enxergam as tatuagens invisíveis, que abrem a porta e pagam a conta porque sim. Vocês, caga-regras que não limpam a bunda, que acham que feministas são mal comidas, recalcadas. Vocês que vivem a confusão de sexualizar ao extremo o corpo feminino e ao mesmo tempo conseguem escorraçá-lo por isso, que morrem de medo de não serem homens:

Vocês é que são a coisa não homem.

P.S.: Nenúfar. Se você chegou até aqui e ainda não recorreu ao Google para saber qual o significado da minha palavra favorita, toma: Nenúfares são plantas da família das ninfeáceas, plantinhas aquáticas. Tipo a vitória-régia.

Tags : brasilcrônicaestuprofeminismorelacionamentossexovida em sociedade
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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