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Conto

Da primeira vez que não morri

Por mais que contem para a gente desde muito cedo que basta estar vivo para morrer, a compreensão real da nossa fragilidade e finitude vem mesmo é com a idade. Posso, por exemplo, com absurda facilidade guilhotinar alguns dedos com a gaveta da escrivaninha. Não que eu vá fazer algo assim, que horror. É só um exemplo que tomo emprestado para dizer que meu corpo e o seu são muito, mas muito suscetíveis a estragos inomináveis. Digo isso hoje, mas não cogitava a possibilidade de perder dedos aos onze, doze anos de vida. Não ficaria surpreso se há duas décadas eu tivesse certeza de que só não aprendera a voar por mera falta de treino. Morrer, então, seguindo a lógica infantil, seria a última de minhas preocupações. Nossa fragilidade e finitude só ficam escancaradas mesmo é com o passar do tempo, às vezes com um leve empurrãozinho do acaso.

Peguemos aquele final de tarde de verão no litoral norte do Espírito Santo. Conceição da Barra. Meu eu de onze ou doze anos, depois de conferenciar com primos, irmão e amigos, resolveu caminhar até a foz do rio São Mateus. Não, minto. Naquela tarde caminhamos para o outro lado. Resolvemos caminhar para a foz do rio Itaúnas.

Lembro-me da imensidão do oceano Atlântico à direita, com seus navios cargueiros e pequenos barcos de pesca sumindo lá onde o céu toca a água. Seis meninos, uns sem camisa e chinelos nas mãos, um com calça jeans e tênis calçados. Oh, a falta de adultos por perto. Um dos primos encontrou um monte de areia onde aquelas plantinhas costeiras ensaiavam avanço e quis mostrar que sabia dar um salto mortal de costas. Meu irmão apostou corrida com os amigos e o outro primo, o da calça jeans. O último adulto em quilômetros era a linha de chegada, sentado com uma menininha sobre uma toalha amarela jogada na areia. O primo perdeu. Eu olhava o rebentar das ondas e o resto da civilização que ficava para trás. Éramos parceiros em crime.

Há vinte anos o comum era acordar cedo, tomar café e ir para a praia. O fato do café da manhã já estar posto à mesa quando nós, os pequenos, acordávamos, com certeza tem alguma ligação com a ignorância sobre os perigos de se estar vivo, mas não nos aprofundemos neste mérito. Acordar logo que o sol nascia, comer e mar. Não me recordo de um almoço fazer parte da rotina, acabávamos comendo qualquer coisa na areia mesmo. A casa de frente para a praia era de um tio distante da minha mãe, no entanto estava sempre lotada nos janeiros da minha infância, com gente de perto e de longe. E nós passávamos o quê, uma semana, dez dias ali? Para mim cabia todo o verão naquela fração de férias. Dez dias para quem tem onze anos é tempo de sobra e, por acaso, naquele dia específico, os adultos voltaram para casa depois de horas torrando ao sol e largaram os meninos livres.

Chegamos à foz do rio. A ideia foi do meu primo, o do mortal de costas. Desgraçado. Todos nós, aliás, grandessíssimos desgraçados. Um banco de areia havia se formado a meio caminho da outra margem, a uns trinta metros de onde estávamos. A força da maré era intimidadora. Um dos amigos, o mais velho do grupo, apontou para a briga do rio contra as ondas. “Olha, dá para ver a areia brilhando. Parece ouro em pó”, ele disse. O sol estava a caminho de se esconder atrás das árvores, lá onde o Itaúnas fazia a  curva antes de desaguar o tal do ouro ali em nossa frente. “Vamos atravessar até aquela ilha ali no meio”, o primo do mortal sugeriu. Desgraçado. Não tenho recordação de alguém ter sido razoável, ter levantado a mínima oposição ao empreendimento imbecil sugerido pelo meu primo. Não, não mesmo. Quando dei por mim já estava dentro d’água, seguindo meu irmão e o primo aventureiro.

Todos sabíamos nadar, disso tenho memória. Lembro-me também do primo da calça jeans dizendo que devíamos fazer uma diagonal contra a corrente e, assim, força do rio para a direita somada à força dos nossos braços e pernas em diagonal para a esquerda, resultaria numa linha reta até nosso destino.

Idiotas.

Tínhamos caminhado para longe do mar antes de entrar no rio. Nadamos com força — acho que nunca bati as pernas com tanta rapidez em toda a vida —, mas logo nos primeiros metros eu percebi que subestimáramos a correnteza e já estávamos mais perto do que seria aconselhável do encontro do rio com o mar, um inferno caudaloso com pitadas de ouro em pó. Talvez naquele momento eu tenha ingerido a primeira leva de água doce. Já sentia os músculos arderem e os pulmões quererem mais ar do que eu era capaz de jogar para dentro. Escutei um de nós, alguém atrás de mim, gritar que não ia aguentar e que era melhor voltar, mas a ideia já tinha visitado minha cabeça e sabia que a única opção era seguir até a ilhota, fosse como fosse. E os goles cada vez mais salgados e maiores.

Faltavam talvez uns cinco metros para mim quando meu irmão conseguiu tocar a margem e engatinhou com dificuldade para fora da água. O banco de areia estava bem menor do que parecera quando éramos um grupo de meninos livres, desimpedidos e secos. Olhei para o lado direito, pois o barulho do Atlântico abocanhando o rio estava alto demais. Sentia meu coração batendo no pescoço e acho que ali eu tive o primeiro vislumbre da minha finitude e fragilidade. Poseidon reclamava meu corpo como pagamento pela nossa audácia, eu não tinha mais forças para continuar, engolia cada vez mais água e por um instante tive ímpetos de parar. Apenas deixar o rio fazer o seu serviço e me arrebentar contra a maré. Meu primo, o do mortal, de repente também estava de pé no monte de areia, ao lado do meu irmão, e ambos esticavam um dos braços para mim. Eu ia desistir.

Daí, no que seria minha derradeira braçada, passei os dedos na areia.

O flerte com a morte certa deu lugar à euforia e tal qual o meu irmão engatinhei para a segurança lá de cima. Ajudamos os outros a subir também, estavam logo atrás de mim. Todos vivos e fora d’água, sentamos para sugar apenas ar outra vez.

O sol já tinha sumido. O lusco-fusco e o vento brincavam com nossas roupas na margem de onde não deveríamos ter saído. Éramos seis moleques exaustos e sentados à beira da foz de um rio, contemplando em silêncio a real possibilidade de tragédia que acabáramos de viver. Creio que boa parte do meu eu de hoje em dia, aquele que pensou na guilhotina de gaveta, tomou forma naquele anoitecer capixaba, tremendo de frio e pensando na melhor maneira de voltar para o lado daquele montinho de roupas, pares de chinelos e tênis, se possível sem botar água acima da cintura.

Tags : aventuracontoinfânciamortevida
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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