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Crônica

Pintando o silêncio

Eu tinha todo um outro texto pronto sobre um assunto completamente diverso. Tinha prometido para mim mesmo que não falaria de amor de novo tão cedo, porque falar de amor às vezes pode ser invasivo: não sei o que as outras pessoas entendem por amor no momento em que estão lendo o que escrevo. Sei falar do meu amor, daquele fogo que não queima e mesmo assim acaba deixando tudo quentinho por aqui, do pescoço até o umbigo. Tinha outro texto, tinha uma promessa e sou um grande traidor de mim mesmo.

Porque a vida acontece, e você acaba percebendo que ela usa algoritmos que te levam a fazer tal coisa ou aquela outra coisa. Você passa a linkar memórias e tudo começa a fazer um sentido medonho. Tem gente que chama isso de destino. Tem gente que chama de deus. Eu prefiro chamar de vida mesmo. Daí a vida aconteceu no momento em que te enquadrei sentada na poltrona do ônibus — eu lá fora e você ajeitando os fones de ouvido lá dentro. Uma das flores que enchiam o galho próximo à janela, o meu quadro imaginário de você indo embora para longe, se encaixava perfeitamente atrás de sua orelha. Em perspectiva, claro, ela se encaixava perfeitamente atrás de sua orelha, como se eu a tivesse colocado lá. Era um quadro bonito e durou um átimo. Aí a vida aconteceu de novo e vi que a árvore era uma mororó, uma pata-de-vaca, da mesma que eu tinha em casa quando criança e que nunca suportou a casa-da-árvore que sempre desejei. O ônibus arrancou e você foi embora.

Tem gente que chama de destino, há quem chame de deus. Eu chamo de vida mesmo. E estou falando assim porque não pude deixar de pensar em como aquela árvore foi um pilar para minha infância, um aconchego de casa e teve que ser derrubada por algum motivo que não consegui recordar. Aí, anos depois, o algoritmo coloca uma flor da mesmíssima cor em sua orelha, instantes antes de você ir para o mais longe que ficamos um do outro em quase uma década. A vida aconteceu e deixou claro que, seja lá o que eu chamei de casa por tanto tempo, estava ali, enquadrada na janela de um ônibus e indo para outro hemisfério. Fazer o quê?

E eu fiz e estou fazendo o que posso. Ando pelo apartamento que triplicou de tamanho, lavo a louça, cuido dos cachorros. Mas faço isso tudo com as músicas que você não me deixa escutar quando está comigo. Há tempos não escuto tanta coisa quanto agora. Aí, hoje à tardinha, a vida aconteceu e decidi que tomaria um banho antes de terminar de escrever o texto que deveria estar no lugar deste aqui. Aumentei o som e fui para o banheiro, entrei no box, girei a torneira e esperei os ouvidos se acostumarem com o barulho da água para poder continuar a escutar as músicas. Tem gente que chama de destino. Tem gente que chama de deus. Prefiro chamar de vida mesmo. Porque ali, na penumbra, usando o embaçamento do vidro e as sombras, meio que tentei reproduzir o quadro da janela do ônibus. Aí a sua música, a que eu escolhi para ser a sua música, começou a tocar.

Há quem chame de destino, deus e essas coisas. Eu chamo de vida mesmo. Meu cérebro pode ter criado relações de causa e efeito onde não existem tais relações de causa e efeito. Às vezes a cor da flor em sua orelha não era da mesma cor da árvore de minha infância. Quem sabe o YouTube também tenha um algoritmo que aumente as chances das minhas músicas preferidas tocarem quando o shuffle está ligado. Às vezes é tudo caótico mesmo e ficamos tentando dar sentido às nossas vivências: quadros imaginários, flores em perspectiva, esposas viajando para longe, pinturas silenciosas num box de banheiro, músicas que tocam porque sim.

Prometi não falar de amor tão cedo, mas acabo falando. Sempre. Não quero ser invasivo, mas hoje amor é descobrir que todos os caminhos me levam para casa, e aparentemente estou morando em você.

Tags : amorcrônicamúsicarelacionamentos
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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