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Crônica

Vai se ferrar

“Vai se ferrar”. É bem mais fácil virar e falar isso, mandar alguém às favas quando não concorda com a gente. As pessoas têm todo o direito de se descabelar quando descobrem que fulano apoia a descriminalização das drogas. Ou a ideia de ter uma arma de fogo em casa. Ou a privatização da Petrobras. Ou aulas de Moral e Cívica nas escolas. Ou aulas de Diversidade Sexual. Têm todo o direito de arrancar os cabelos, e vão arrancá-los. Gritar e espernear. Em nome de deus ou num rebuscado e monótono e chato texto na internet. E por quê? Porque têm todo o direito de discordar e não são raras as vezes que mandam um “vai se ferrar“, um “sai daqui”, um “não quero contato contigo”.

Difícil mesmo — e aqui estou sendo opinativo — é levar a sério a citação tantas vezes colocada em status de MSN, naquela tentativa adolescente de charme e profundidade online que beirava o ridículo:

“Posso não concordar com tudo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo.”

by Voltaire

Assim mesmo, segunda pessoa do singular para dar o arremate necessário e um “by” para soar descolado. E olha que isso nem é de Voltaire.

O raciocínio é simples: eu gosto de vermelho e meu vizinho gosta de azul. Eu não acho que azul vai bem com seja lá o que for, mas se por acaso começar a cortar as cabeças de quem gosta de azul, nada impede que as pessoas de amarelo comecem a afiar as espadas para deixá-las vermelhinhas mais tarde.

Simples, mas os descabelados, em nome dos santos ou munidos de um doutorado em universidade pública, se acham melhores. Meio que em tudo. Vão julgar suicídio fazendo referências a textos sagrados, vão inventar textos sagrados para julgar suicidas. Receberão palmas e likes por isso. Vão condenar tal agente político por agir assim ou assado, no entanto vão gastar o “sub-reptício”, a “ablução” e todo o academiquês possível para salvar outro agente político por agir do mesmíssimo jeito. E também receberão palmas e likes.

Repetindo-me: têm todo o direito de se descabelar na discordância. Têm até o direito de se considerar o norte social.

Eu, por outro lado, e seguindo a mesma lógica, tenho o direito de julgar o show de certezas e cabelos arrancados muito perigoso. E de usar literatura como exemplo:

Aureliano Buendía, o coronel de Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão, ao tentar entender a diferença entre liberais e conservadores, ouve do sogro (conservador) que os membros do partido liberal são gente de má índole, matadores de padres, afeitos ao reconhecimento de filhos fora do casamento, da instituição do divórcio e do sistema federalista para o país. Os conservadores, por outro lado, eram enviados divinos, defensores da ordem e da estabilidade pública, da moral na família e da fé em Cristo, e não queriam saber da ideia de dividir o país de forma alguma. Aureliano achava justo o pensamento liberal sobre a equiparação dos direitos dos filhos, “mas fosse como fosse”, escreve García Márquez, “não entendia como se chegava ao extremo de fazer guerra por coisas que não podiam ser tocadas com as mãos”.

Sei que o “vai se ferrar” e o “não quero contato contigo” vão continuar, pois é mais fácil e confortável para quem solta tal coisa. Uma pena, mas sejamos pacientes. O negócio começa a ficar feio quando o xingamento e a distância são trocados pela obrigatoriedade de pensarmos exatamente como este ou aquele grupo demanda, quando passamos a proibir fulano ou sicrano de falar o que pensa, expor qualquer coisa ou aparecer em qualquer lugar.

Não há nada mais perigoso para a liberdade — a minha e a sua, não se engane — do que a certeza de se estar do lado certo.

Tags : literaturapolíticareflexãovida em sociedade
Marcos Marciano

The author Marcos Marciano

Marcos Marciano é um ser humano amador. Formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, lê livros por esporte e escreve por falta de vergonha na cara. Ainda não sabe por que a Débora resolveu se casar com ele.

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